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PMSP/SMC/DPH
São Paulo, novembro/dezembro 2007
Ano 3 N.15  

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  • ESTUDOS & PESQUISAS

  • Cinema em São Paulo e legislação municipal:
    o edifício, o comércio e os "bons costumes"



    Consulte o quadro resumo da legislação municipal
    no período entre 1892 e 1930
    relacionada a diferentes tópicos sobre cinema (PDF)


    A reestruturação do Executivo municipal após a proclamação da República, com um novo ordenamento entre as diferentes esferas de governo — do federal ao municipal —, constitui uma oportunidade rara para compreender o espaço de ação da administração. Representa ainda, aspecto mais significativo para o pesquisador interessado no tema, uma forma para identificar os eventuais conjuntos documentais a serem explorados.

    O espetáculo teatral e outros divertimentos

    A Lei nº.1, de 29.9.1892, cria quatro intendências (o equivalente a atuais secretarias), "distribuindo os serviços municipais", entre elas, a de Justiça e Polícia. Entre suas atribuições, cabe a esta, o que nos interessa, fiscalizar os "jogos, espetáculos...". O regimento interno da Câmara Municipal, definido pela Lei nº.9, de 3.12.1892, em seu artigo 161, avançará acerca do assunto ao precisar estas funções: "Cuidar da assistência pública, sem prejuízo da ação do Estado, promovendo o saneamento da cidade, dos povoados ou localidades; [...] e inspecionando regularmente todos os estabelecimentos públicos ou particulares onde haja aglomeração de pessoas, como colégios, hotéis, hospedarias, teatros, circos e outros que possam e devam ser equiparados."

    É no campo dos impostos municipais, contudo, que se pode ter uma noção sobre o campo dos "espetáculos", que iam muito além do mero evento teatral. Por exemplo, a Lei nº.64, de 16.10.1893, que "aprova a tabela de impostos municipais", na Tabela do Imposto de Alvarás, Estacionamentos e Localizações, discrima com detalhes, entre outros:
      Espetáculo de cavalinhos artificiais [carrossel], um... 10$000
      Espetáculo de cavalinhos
      [circo], ginástica, acrobacia, tauromaquia... 60$000 e 100$000
      Espetáculo de fantasmagoria, presdigitação, quadros vivos e metempsicose, um ...50$000
      Espetáculo de jogo de pela, um... 50$000
      Espetáculo lírico, dramático ou concerto, um.... 50$000 e 100$000
    Se o imposto referido corresponde a cada espetáculo realizado, a atividade regular empresarial é alvo do imposto de indústrias e profissões. Na mesma lei, consta, em tabela específica, em "segunda classe", sujeita a o valor fixo 200$000 e um porcentual determinado, o item "Teatro e casa de espetáculo, empresário ou diretor de cada...". Não consta, porém, discriminado na lei o porcentual.

    Em 1894, a Lei nº.121, de 6.12.1894, ao modificar o "Poder Executivo Municipal", reestruturado agora ao redor de apenas duas intendências "Justiça e Polícia" e "Obras", inclui entre seus 17 artigos especificações fora de lugar, considerando-se o tema deste texto legal. Notem, antes de avançar, a competência de inspeção da primeira intendência sobre "os serviços de higiene, instrução pública, imigração, matadouro, cemitérios, aferições e em geral todas as funções executivas de caracter policial."

    O artigo 12 traz a primeira referência direta (sem maior explicação aparente para a inesperada referência ao tema) a questões de instalações físicas: "O Intendente de Justiça e Policia providenciará para que os teatros e circos sejam iluminados à luz elétrica o mais breve possível". É, porém, o artigo 14, mais revelador, pois aponta para uma questão de fundo, que permanece ao longo do período estudado.

    Os limites da ação municipal, no período da Primeira República, constituem pontos conflituosos entre Estado e Município. Este aspecto já está presente em 1893, na Resolução nº.21, de 3.3.1893, que declara "pertencer à Municipalidade a inspeção dos Teatros". Na Lei nº.121, por sua vez, o mencionado artigo 14 indica que a sobreposição de ações é já objeto de acordos operacionais. Aspecto que não é exclusivo apenas do universo de espetáculos, mas também na área de fiscalização de veículos, por exemplo. Ou, conforme o texto da lei: "(não haverá) obrigação para o Intendente de assistir espetáculos e divertimentos públicos, entrando em acordo com a Policia do Estado com relação a esses e outros serviços de Policia cumulativa, ou de tranqüilidade e segurança publica."

    A Lei nº.252, de 2.7.1896, que "declara ser atribuição do Intendente de Polícia e Higiene a fiscalização dos teatros e divertimentos públicos", parcialmente alterada em 1904, apresenta alguns desdobramentos em seus 17 artigos. Reafirma, antes de tudo, a competência para fiscalização dos teatros, espetáculos e divertimentos públicos, e a obrigatoriedade de licença prévia do Intendente de Polícia e o pagamento dos respectivos impostos para cada espetáculo público. Detalha ainda vários aspectos, do comportamento do público durante os espetáculos à determinação de lotação das salas. E, mais uma vez, o artigo 16 exige o uso de iluminação elétrica. Quase uma década depois, a lei n.713, de 29.2.1904, modificará precisamente este artigo, tolerando a iluminação a gás como forma suplementar, sinal da eventual dificuldade de suprimento de energia.

    O orçamento de Receita e Despesa para o ano de 1899, definido na Lei nº.375, de 12.12.1898, introduz uma nova taxação, esta mensal, ao incluir os "teatros, velódromos e outros congêneres" entre os estabelecimentos cobertos pelo serviço de limpeza particular, por intermédio de empresa contratada pela Câmara Municipal. O lançamento e arrecadação desta taxa de limpeza particular será regulamentado pelo Ato nº.35, de 20.5.1899.

    O cinematógrafo

    Os orçamentos anuais são fontes privilegiadas para detectar as modificações regulares no sistema de impostos e taxas. Assim, ano a ano, ocorrem aumento de valores, modificações de percentuais, e, o que nos interessa aqui, exclusão ou inclusão de atividades registradas na cidade. Assim, a Lei nº.493, de 26.10.1900, que "fixa a despesa e orça a receita do município" para 1901, traz a primeira referência à exibição cinematográfica no artigo 35 dedicado à tabela do imposto de licenças, estacionamentos e localizações:
      Cinematógrafo, exposição de, por mês....100$000 [...]
      Cosmorama, por semestre... 200$000 [...]
      Fotografia animada, exposição de, por mês... 100$000
    Chama a atenção a permanência na legislação, de referências a divertimentos óticos como o cosmorama, atividade registrada em São Paulo desde o século XIX, e continuamente sujeita à inspeção municipal (a este respeito veja artigo da Seção Técnica de Manuscritos). É relevante a menção sobre "fotografia animada", expressão freqüente na imprensa nos anúncios de exibições cinematográficas. Notem, contudo, que o termo era empregado no mesmo período para identificar os flip books, pequenos cadernos com desenhos ou fotos seqüenciais, que, ao manusear-se o livro, ganhavam movimento. No momento, não é possível saber a que se refere o item da mencionada lei.

    Os orçamentos seguintes trazem com alguma regularidade novos indícios da atividade na cidade. Em 1902, a Lei nº.611, de 22.10.1902, sobre as receitas do ano seguinte, registra claramente uma diversificação de exibições cinematográficas, conforme alterações na tabela de imposto de licenças:
      Cinematógrafo ou fotografia animada, no triangulo central, por mês... 200$000
      Fora do triangulo central, por mês... 100$000
    No ano posterior, o orçamento para 1904, definido pela Lei nº.683, de 7.11.1903, indica tanto um aumento dos valores cobrados pelo imposto de licença, sinal talvez da relevância econômica da atividade, como uma sofisticação: a introdução do som.
      Cinematógrafo ou fotografia animada, por 30 dias: 300$000
      No centro da cidade... 300$000

      [fora do centro]............... 150$000
      [...]
      Musica mecânica nos cinematógrafos e outras casas de diversões, por mês... 100$000
    Sinal adicional de uma expressão crescente dos cinematógrafos e dos demais divertimentos públicos pode ser revelado, de forma indireta, no orçamento para 1905, através da Lei nº.790, de 17.11.1904,no artigo 22 dedicado ao "imposto de publicidade". São taxados:
      Anúncios de terceiros em teatros, casas de espectadores, salões, cafés, botequins, etc.
      até 10 anúncios... 100$000
      de mais de 10 anúncios... 300$000
      Este imposto é devido pelo empresário do estabelecimento em que forem feitos os anunciantes.

      (Veja também a Lei nº.2.932, de 29.10.1925)
    Cinco anos depois, o orçamento para 1910, detalhado na Lei nº.1.258, de 30.10.1909, introduz modificação no imposto de licença, com considerável aumento de valor. Mais ainda, indica o texto uma prática operacional ao taxar cinemas com mais de um projetor. Muito provavelmente, essa referência reflete a exibição de filmes de maior duração, que poderiam ser projetados sem interrupção. Como consta no artigo 16:
      No centro da cidade:
      Por mês, com mais de um aparelho.... 800$000
      Por mês com um só aparelho... 500$000
      Por dia... 30$000
      Fora do centro da cidade:
      Por mês ... 200$000
      Por dia ... 20$000
    O crescimento da taxação é, quase certo, expressão do dinamismo da atividade. Tratam-se de ajustes específicos desta categoria de atividade e não reajustes gerais das tabelas. O orçamento para 1914, por exemplo, conforme Lei nº.1.749, de 29.10.1913, incluirá não apenas as salas exibidoras, mas os distribuidores cinematográficos:
      Artigo 17 – Imposto de indústrias e profissões
      Acréscimo
      Fitas cinematográficas (Mercadores ou alugadores de):
      1. ordem... 1:000$000 e 20%
      2. ordem... 500$000 e 20%
      3. ordem... 300$000 e 10%
    No período abordado neste Informativo, essas taxações serão alteradas no exercício de 1925, conforme Lei nº.2.768, de 29.10.1924:
      Artigo 9 – Imposto de indústrias e profissões
      51) Fitas cinematográficas (fabricante de):
      [aqui interpretado como distribuidores]
      1. ordem... 2:000$000 e 20%
      2. ordem... 1:500$000 e 15%
      3. ordem... 1:000$000 e 10%
      4. ordem... 500$000 e 10%

      Artigo 10 – Imposto de licença
      Cinematógrafos:
      No perímetro central – com mais de um aparelho realizando duas sessões diárias, por mês... 1$200$000
      Idem, com um só aparelho, realizando duas sessões diárias, por mês... 1$000$000
      Idem, por dia, cada sessão... 30$000
    Novas codificações legais

    Modificação significativa no campo legal ocorre em 1909. É necessário, porém, retroceder dois anos e mencionar a edição da Lei estadual nº.1.103, em 26.11.1907, que modifica a Lei nº.1038, de 19.12.1906, sobre a organização municipal.

    Seu artigo 23 estabelece, que a "atribuição do artigo n.18 n.9 da Lei nº.1038, de 1906, não abrange a inspeção e fiscalização dos espetáculos e divertimentos publicos que, nos termos dos artigos 133 a 143 do regulamento nº.120, de 31 de Janeiro de 1842, continuam a ser da exclusiva competência da polícia do Estado". O tênue limite de atuação entre Estado e Município no campo em questão constitui um tema regular nos debates legislativos.

    O Decreto estadual nº.1.714, de 18.03.1909, regulamenta "os divertimentos públicos, nos termos do artigo 23 da Lei 1.103, de 26 de novembro de 1907 e mais disposições em vigor". Extenso, com 102 artigos, ordenado em 13 capítulos, estabelece com detalhes a operação das salas e as atribuições das partes envolvidas — público, empresários, policiamento e bombeiros. No entanto, o foco é ainda o teatro. O capítulo XII, intitulado Das disposições especiais aos cinematógrafos, inclui apenas dois artigos, que tratam de aspectos operacionais da cabine de projeção com ênfase na segurança.
      Artigo 81 – Os empresários de cinematógrafos, além das prescrições deste regulamento, são obrigados:
      § 1 – A ventilar a cabina com um postigo de tela de metal.
      § 2 – A conservar entre o condensador e a fita fotográfica um tina com solução de pedra hume.
      § 3 – A recolher a fita desenrolada numa caixa de metal a qual terá só uma abertura necessária à sua passagem.
      § 4 – A ter na cabina dois empregados, um dos quais evitará que mais de uma fita fique desenrolada.
      § 5 – A conservar sempre ao alcance destes empregados dois baldes com água.
      § 6 – A não permitir que se fume dentro da cabina.
      § 7 – A não usar lâmpadas portáteis.
      § 8 – A guarnecer convenientemente os condutores elétricos dentro da cabina.
    Constitui este regulamento o primeiro código específico que regre em parte as condições de operação dos teatros e cinematógrafos. Nos anos seguintes, apenas uma única lei, voltando à esfera municipal, incluirá um item suplementar: os banheiros públicos. Em 1912, a Lei nº.1.591, de 12.9.1912, "determina a instalação de latrinas e mictórios nos estabelecimentos de caráter público, para uso dos seus freqüentadores". O artigo 1 deixa claro a quem se dirige: "Todas as casas de diversões e os estabelecimentos comerciais, de caráter público, como teatros, cinematógrafos, cafés, bares, chopes, botequins, restaurantes, leiterias, etc., devem ter latrinas e mitórios em número suficiente para uso dos seus freqüentadores". Ficam estabelecidos ainda a exigência de manutenção dos mesmos "em permanente estado de limpeza" e o prazo até 31 de dezembro daquele ano para atendimento do texto legal por parte dos estabelecimentos.

    A implantação na década de 1910 de um grande conjunto de salas fixas dedicadas ao cinema, não apenas na área central mas nos principais bairros como Brás, Barra Funda ou Bom Retiro, exigirá por parte da municipalidade ações mais amplas. Indo além do aspecto de taxação sobre o comércio, no período que se segue delinea-se uma primeira e efetiva regulação das edificações no tocante a construção e a segurança contra sinistros. O Ato nº.701, de 11.07.1914,"regulamenta e consolida as leis sobre espetáculos e divertimentos públicos". De modo geral, ele estrutura em dez artigos uma legislação algo esparsa emitida entre 1896 e 1912, marcando o início dessa tendência legislativa. O ato ilustra ainda a diversidade de divertimentos públicos, cobrindo de jogos de argolas a eventos no velódromo.

    Ações significativas ocorrem dois anos depois. A Lei nº.1.954, de 23.02.1916, "regulamenta a construção ou adaptação de prédios para o funcionamento de cinematógrafos no Município da capital". Sua regulamentação no mesmo ano, pelo Ato nº.983, de 21.9.1916, constitui em seus 32 artigos, frente aos 22 da lei, o marco regulador sobre a edificação das salas de exibição.

    Para a compreensão de sua estrutura, é oportuno tomar como instrumento auxiliar a consulta à documentação das sessões da Câmara. Publicadas regularmente no período, os Anais são reveladores da rotina legislativa, das preocupações dos vereadores e dos impasses eventuais. Neste caso, na sessão de 4.1.1915, fica evidente o motivo da introdução do tema: o incêndio do Teatro Polytheama, ocorrido ao final de 1914. Velho centro de espetáculos, o Polytheama, situado no vale do Anhangabaú, era notório havia muito pela sua precariedade. O incidente, sem vítimas, ocorrido logo após o término das funções, com uma exibição cinematográfica, motiva a apresentação de singelo projeto pelos vereadores Luís Fonceca, Goulart Penteado, Sampaio Vianna e João José Pereira.

    Seus quatro artigos são objetivos:
      Artigo 1 – O Prefeito cassará a licença das casas de diversões que, em S.Paulo, não tenham as suas instalações elétricas de acordo com a técnica moderna, igualmente daquelas casas que não tenham saídas amplas, que facilitem a pronta retirada dos espectadores, em caso de incêndio ou pânico.
      Artigo 2 – O Prefeito fica autorizado a especificar em regulamento quais as regras e preceitos para instalação e funcionamento das referidas casas.
      Artigo 3 – Pela repartição competente, o prefeito fará efetiva a fiscalização das casas de diversões, para os fins do art.1º.
    A leitura do laudo pericial do incêndio, com depoimentos de testemunhas que estavam no local reparando o motor-gerador, traz dados importantes sobre aspectos técnicos. No caso, sobre o motor, com 10 HP, 220 volts, trifásico, acionando um dínamo de 114 volts e 75 ampéres, situado sob o palco, utilizado para transformar a corrente alternada em contínua para uso da "lanterna de projeção do aparelho cinematográfico". Citando o laudo ainda: "Em primeiro lugar, cumpre observar que a instalação de luz elétrica do Polytheama era péssima e muito mal observada, como, em geral, acontece nos nossos pequenos theatros da capital." (em itálico, no original).

    O vereador Luís Fonceca domina a apresentação da proposta. Menciona a ausência de legislação municipal sobre instalações elétricas, tópico que será regulado anos mais tarde, pelo Ato nº.1.147, de 21.9.1917, dedicado ao serviço de ligação das instalações elétricas dos consumidores com as redes distribuidoras da The S. Paulo Tramway, Light and Power Co. Ltd, ou como seria denominada coloquialmente - a Light.
      Luís Fonceca – Há diversas dessas casas, cinematógrafos principalmente, e que eu tenho freqüentado, das quais, se houver um incêndio, dificilmente se retirarão os espectadores. O número de portas é não só insuficiente, como todas abrem para dentro dos respectivos salões, o que constitui grave defeito. Em uma dessas casas, em que se reúnem mais de 1.500 pessoas, existem apenas três portas, duas dão para um salão lateral e outra para a rua. As duas laterais funcionam sobre corrediças, em cima e em baixo, e a que dá para a rua abre para dentro do salão e é bastante estreita. Em outra casa, e esta no centro da cidade, o salão está atravancado de cadeiras, divididas ao centro por extenso e longo corredor, que vai ter a três portas, que também abrem para dentro do salão e das quais há duas ou três filas de cadeiras soltas, que naturalmente tombarão por ocasião de um pânico, impedindo a saída dos espectadores e ocasionando cenas horríveis de imaginar. (Anais, 1915, p.6)
    A discussão ao longo desta sessão e das seguintes permitirá o detalhamento do projeto através de três comissões internas: Obras, Justiça, e Higiene e Saúde Pública. Revela-se nesse processo a existência mesmo de um projeto anterior apresentado pela Direção de Obras, em 1913. O debate estende-se pelo ano de 1915. Em sessão de 3.1.1916, o vereador Luís Fonceca comenta a repercussão imediata da apresentação do projeto, lembrando que os responsáveis pelo Iris Teatro, que possuía portas para outra rua, abrindo para dentro, mas com acesso restrito devido a filas de cadeiras soltas, haviam providenciado modificações. Imediatamente, no período de apresentação do projeto, alteraram a abertura das portas e removeram as cadeiras. Nota o vereador, porém, que ultimamente foram colocadas cadeiras fixas, que impedem o funcionamento de três das portas de saída. A ausência de uma regulamentação efetiva, comenta o legislador, impede a ação efetiva da fiscalização. Menciona ainda o incêndio recente em cinema no Brás, talvez o cine Oriente; dado complementado pelo vereador Rafael Gurgel sobre outro sinistro ocorrido em cinema na Rua General Jardim, provavelmente o Cinema Theatre, situado naquele logradouro no número 57.

    A lei aprovada, ainda que breve, destaca pontos básicos enfaticamente voltados para a segurança do espectadores em caso de incêndios. Busca-se garantir o acesso livre às saídas, estabelecendo larguras mínimas para portas e corredores, e o isolamento da sala quanto à propagação horizontal e vertical do incêndio (muito embora a discussão nas sessões destaque o risco principal da cabine de projeção e estabeleça o seu isolamento com indicações específicas). A instalação dos cinematógrafos fica restrita ao andar térreo, como exigência complementar. Estabelece-se ainda largura mínima para as salas: 8 metros, na ausência de frisas e camarotes, 14 metros, na presença destas ordens; decisão que reflete a precariedade das primeiras salas como evidenciam alguns registros reproduzidos neste informativo.

    Orientações complementares sobre sinistros determinam, de modo algo desarticulado, a presença de depósito de água, junto à tela, no lado interno, com "capacidade suficiente para acudir a qualquer acidente." (...) "Além disso, para os primeiros socorros, em caso de incêndio, devem os cinematógrafos estar munidos dos necessários aparelhos, ligados à rede geral de cidade."

    Por fim, proibe-se fumar nas salas de espetáculos, determinação já estabelecida no regulamento estadual de 1909, e exige-se a instalação de ventilação mecânica para renovação constante do ar. A postura municipal, em conjunto com o Decreto estadual nº.1.714, de 1909, constituem agora um padrão mínimo para construção e operação das salas. Com certeza, o processo de aplicação não será fácil. A lei municipal estabelece o prazo para os cinemas em funcionamento de quatro meses para início das reformas e oito para finalização. Este prazo será modificado nos próximos anos. A Lei nº.2.101, de 11.11.1917, além de modificações parciais de parâmetros construtivos, estende o prazo por mais três anos. Em 1921, a Lei nº.2.379, de 22.3.1921, prorrogará por mais dois anos a efetiva adaptação das salas.

    A regulamentação da Lei nº.1.954, realizada ainda em 1916, pelo Ato nº.983, é marcada pela precisão dos termos e a aplicação das orientações. Ganha maior clareza a exigência de iluminação ao longo dos acessos de saída, associada a circuito independente, e a necessidade de apresentação da planta de "toda a instalação de luz elétrica, com indicação da situação dos quadros, distribuição, número de lâmpadas, sua força, etc.". Exige-se a proteção da instalação elétrica por meio de "canos de metal ou cabo armado" e, no caso, dos "aparelhos de exame, como chaves, fusíveis, etc.", que estes sejam "fechados em caixas de aço ou pequenas cabinas de ferro".

    Nos anos que se seguem de imediato, os novos textos legais abordam o tema mais em função de fatores externos. Em 1918, por exemplo, a Lei nº.2.119, de 16.2.1918, autoriza a Municipalidade a adotar, na parte referente às construções e reconstruções de prédios urbanos, a Lei estadual nº.1596, de 29.12.1917. Esta inclui entre seus 374 artigos, que reorganizam o Serviço Sanitário do Estado, 82 artigos dedicados a construções urbanas em geral. Seis deles tratam de cinemas e teatros, apenas destacando-se a necessidade de aprovação dos projetos pela "autoridade sanitária competente, antes do início das obras".

    A adaptação pelo Executivo municipal é realizada através do Ato nº.1.235, de 11.5.1918, e constitui, em seus 259 artigos, uma das mais abrangentes reestruturações ao longo da próxima década. Outra ação similar, a edição, através da Lei nº.2.332, de 9.11.1920, do "Padrão Municipal" para construções particulares, com 261 artigos, não abordará edifícios especiais como os cinemas.

    O texto legal de 1918 incorpora na quase totalidade as orientações da legislação municipal de 1916 em seus 22 artigos. Um acréscimo chama a atenção: o artigo 166 estabelece que "prédios no interior dos terrenos ocupados pelas salas terão pelo menos dois corredores de acesso à via pública, com largura mínima de de 4 metros casa um". Embora não fiquem evidentes outros motivos além da segurança, esta orientação pode ter aberto a possibilidade da construção de salas em galerias comerciais, hipótese a ser melhor avaliada.

    Finalizando o período, em 1929, com a Lei nº.3.427, apresenta-se o Código de Obras Artur Sabóia. Extenso, detalhado e melhor hierarquizado, o código com 595 artigos aborda o tema em dois tópicos. Reflete ainda a permanência do modelo arquitetônico adotado pelas salas de cinema de referência teatral, com palco, frisas e camarotes, modelo que será imediatamente abandonado no anos seguintes. A parte segunda apresenta na sessão III, dedicada a teatros, cinematógrafos e casas de diversões, em 23 artigos, algumas novidades. A mais expressiva é a adoção do cálculo de largura mínima para portas e acessos em função da capacidade da sala (1 metro para 100 pessoas), associado a limites mínimos em diferentes ocorrências.

    A sessão IV, dedicada aos "cinematógrafos", em 30 artigos, incorpora a legislação anterior. Detalha aspectos novos como área mínima para frisas e camarotes (2 metros quadrados), com boca de 1,3m; define-se patamares e espelhos mínimos para as escadarias.

    O aspecto mais importante é certamente relativo à aeração das salas. Embora o tópico seja mencionado na legislação desde 1916, não havia até então nenhuma postura que se aplicasse ao caso. A necessidade era flagrante. A documentação custodiada pelo AHMWL inclui exemplos da década de 1910, reproduzidos no ensaio da Seção Técnica de Manuscritos, apresentando projetos para salas como Oriente ou Marconi, que incluem sistemas de exaustão.

    Os artigos 387 a 392 abordam o tema. Exigem "aspiração do ar interior e/ou insuflação superior do ar externo". Determinam o "uso de exaustores de saída no telhados, com saída a pelo menos 2 metros acima das casas próximas", a "introdução de ar puro, sem incômodo ou prejuízo à saúde dos espectadores", atendendo um proporção de "50 m3/hora por espectador".

    Moral e bons costumes

    A legislação municipal de 1916 (nº.1.954), dedicada ao edifício dos cinematógrafos, introduz um tema inesperado:
      Artigo 18 – É proibida a exibição de fitas que ofendam à moral pública ou prejudiquem a educação dos menores, sob pena de serem apreendidas essas fitas e incorrer o proprietário do cinematógrafo na multa de 50$000.
    Se a inclusão do dispositivo é inesperada, considerado o enfoque do texto legal, a decisão é em si polêmica, ao estabelecer litígio com a esfera de ação estadual, como é possível avaliar pela leitura dos anais das sessões. O vereador Sampaio Vianna, na sessão de 3.1.1926, levanta a dúvida, mas acrescenta:
      De facto, Sr. Presidente [Rocha Azevedo], é preciso que haja qualquer movimento, por parte da Câmara, da Prefeitura ou da polícia, com relação a essa matéria, porque os abusos estão se repetindo todos os dias, com a exibição de fitas que nunca deveriam ser apresentadas em publico e especialmente ás crianças.
      O sr. Marrey Junior – É o producto da época.
      (Anais, 1916, p.8-9).
    O conflito implica ainda em avaliar qual ação do agente de polícia (do Estado) na aplicação. Havendo dualidades normativas e penalidades distintas fica a questão: A policia é que inspecciona e fiscaliza. Qual a disposição de que deverá lançar mão? (vereador Marrey Junior) (Anais, 1916, p.12-14).

    Encerrando conversa sobre competências, Marrey Junior comenta:
      Vêem, pois, os meus colegas, que há muito que refletir, assim como há muitos outros pontos que exigem, a meu ver, muita ponderação, muita prudência. Assim, seria de grande relevância que se cuidasse das descrições das fitas, que as empresas costumam fazer em uma linguagem muitas vezes incompreensível, em uma verdadeira mistura, que nos dá a impressão do pouco caso que se tem pela língua que falamos. Legislar sobre isso seria uma conseqüência do que já fez a Câmara quanto aos letreiros de anúncios e taboletas.
      O sr. Alcântara Machado – Teríamos um embaraço extraordinário: qual o sistema ortográfico municipal?
      O sr. Marrey Junior – Não se exigiria certamente senão a forma literária, que nos desse a certeza de que estaríamos lendo português. O cinematógrafo, como naturalmente já foi dito, é uma escola. A nossa cidade é cosmopolita e nós não devemos admitir que continue à vista do publico essa mesma linguagem que observamos entre estrangeiros e que é um misto de italiano ou francês com o português.
      (Anais, 1916, p.14-15)
      (vejam a Lei nº.1.876, de 27.10.1914, que restringe anúncios em língua estrangeira, e Lei nº.3.009, de 8.11.1926, que cria o cargo de censor de publicidade – ortografia, e o Ato nº.2.788, de 26.6.1927, que regulamenta o censor de publicidade)
    A disposição sobre censura será posteriormente retirada dos textos legais relativos à edificação das salas. Contudo, ganha corpo próprio. A Lei nº.2.015, de 20.10.1916, é precisa: "Proibe a exibição de fitas cinematográficas que não consultem a moral e os bons costumes".

    O projeto original, de autoria de Marrey Junior, toma forma final em quatro artigos. Estabelece como agente de aplicação o "encarregado da fiscalização". O artigo 2 determina:
      Não se concederá licença para funções cinematográficas:
      a) – sem que dois exemplares
      [do programa] sejam previamente submetidos à aprovação do referido funcionário que, neles pondo o seu visto, reservará um para exercer a fiscalização e devolverá o outro ao empresário, para o afixar na sala de espera do cinematógrafo ou na bilheteria;
      b) – sem prévio exame, pela mesma autoridade, dos filmes e respectivos dizeres, os quais serão em puro vernáculo, expurgados dos barbarismos, expressões grotescas, alusões ofensivas ou maliciosas.
    A lei determina a multa de 50$000 e no caso de reincidência a não concessão de licença para funcionamento. O projeto do vereador Marrey parece ter um consenso na Câmara. Na sessão de 14.10.1916, surge novamente a questão de eventual conflito entre leis municipal e estadual, para não lembrar da sua previsão pelo Código Penal:
      Resta-me, pois, nesta segunda discussão, fazer um apelo verbal ao Sr. Prefeito [Washington Luís] para que S.Exa. se entenda com o ilustre Dr. Secretário de Segurança Pública sobre a melhor forma de se pôr em execução a nossa lei. E desta forma fica respondido o que alguém interessadamente já disse por um dos jornais da cidade, sobre a constitucionalidade, textualmente, da matéria do substitutivo. (Marrey Junior, Anais, 1916, p.313)
    Nada se sabe até agora sobre a aplicação desses dispositivos legais. Certamente pesquisas a serem desenvolvidas nos conjuntos documentais relacionados (Justiça e Polícia, Higiene...) permitirão identificar novos dados.

    No entanto, a questão em prol da "moral e bons costumes" apresenta um último desdobramento. A Lei nº. 2.649, de 10.9.1923, determinará a proibição, "em certos casos", da entrada de menores de 12 anos de idade nos cinematógrafos. Cabe ao...
      [artigo 1] encarregado de fiscalização das fitas, a seu juízo, entender que uma fita a ser exibida é imprópria ou inconveniente aos menores daquela idade.
      Artigo 2 – Para observância da disposição da presente lei, ficam obrigados os proprietários de cinematógrafos a fazer constar dos programas, cartazes e anúncios das fitas referidas, a proibição imposta pelo fiscal, bem como afixar a proibição na porta da entrada do edifício.
    A multa prevista é menor: 20$000, na primeira vez e o dobro nas reincidências. O projeto, de autoria do vereador Heribaldo Siciliano, é defendido na sessão de 10.12.1921:
      O sr. Heribaldo Siciliano - Todos os que têm filhos sabem o quanto é difícil impedir que, nos domingos e dias feriados, em que as salas de espetáculos anunciam "matinées infantis", conseguir que as crianças não assistam a essas fitas, até porque S. Paulo não tem divertimentos especiais para crianças, não dispõe de lugares onde elas possam empregar seu tempo em folguedos próprios de sua idade. É fatalmente o cinema o lugar para onde elas se dirigem.
      Não pide deixar de haver da nossa parte uma certa tolerância em conceder licença para elas irem ao cinema, porque somos iludidos pelos próprios programas dessas casas, onde o espetáculo, parecendo, muitas vezes ser bom, é, ao contrário, inconvenientíssimo.
      Nessas condições, penso que só mesmo com a intervenção oficial é que se poderá conseguir alguma cousa. É realmente necessária uma proibição terminante da entrada de menores nas salas destinadas à exibição de fitas cinematográficas, sempre que o encarregado oficial da censura declare serem essas fitas inconvenientes ou impróprias. Só assim as empresas que dão esses espetáculos chegarão a organizar programas em que as crianças, em vez de se perverterem, recebam instrução e tirem do cinema os benefícios que ele realmente lhes pode dar.
      (Anais, 1921, p.493-494)
    Propaganda de Estado

    Nenhum dispositivo legal voltado para o campo da produção cinematográfica, seja relativo a impostos, seja como estímulo à produção, foi localizado no período 1900-1930. Um único vínculo direto está ligado ao uso do cinema como veículo de propaganda, aspecto que não passaria despercebido em outras esferas governamentais.

    Em função das comemorações do Centenário da Independência, a Câmara aprova a Lei nº.2.458, de 22.2.1922, que "autoriza a Prefeitura a contratar com Pamplona, Del Picchia e Comp., proprietários da Empresa Cinematográfica 'Independência Film', a execução e exibição do filme geral do Município de S. Paulo, na Exposição Nacional, comemorativo do I Centenário da Independência."

    Prevendo um filme de longa duração (5 mil metros), o filme visa, como estabelece o artigo 6: "dar uma idéia sucinta e integral do progresso da cidade e do Município de S. Paulo até 1922, constatando fatos históricos e seu desenvolvimento industrial". Mais uma vez, os Anais trazem informações relevantes:
      Sessão 4.2.1922 - Parecer n.4, das Comissões Reunidas de Finanças e Justiça, de 21.01.1922
      "O assunto da fita, a ser composto sob as vistas e com a colaboração do sr. prefeito municipal [Firmiano Pinto], compreenderá vistas panorâmicas de S. Paulo, dos seus bairros residenciais e obreiros, dos seus palácios, estátuas, monumentos, jardins, obras em construções, viadutos, igrejas, torres, esplanadas, morros, vilas operárias e palacetes particulares, a par não somente de aspectos pinturescos da sua vida urbana nas ruas centrais, nos corsos da avenida Paulista, na saída dos trabalhadores das fábricas e dos alunos das escolas, nas feiras livres, no movimento dos veículos, na animação do carnaval, mas também de reconstituições retrospectivas da cidade, em eras remotas, em contraste com a situação atual, para fornecer uma noção indiscutível do vertiginoso progresso da metrópole paulistana. (Anais, 1922, p.68-70)
    Finalizado, o filme é exibido aos vereadores em sessão especial no Cine Teatro República, em 29.5.1922. Em dezembro daquele ano a produção é apresentada no pavilhão de cinema do Estado de São Paulo, na Exposição do Centenário, na Capital Federal. Como informa o cadastro da Cinemateca Brasileira, não se conhece a existência de cópias remanescentes.


    Encerra-se, por enquanto, essa peculiar "história do cinema" em São Paulo através da legislação municipal. Pesquisas futuras poderão tomar vários dos pontos inventariados como delimitadores de ação sobre a documentação remanescente.


    Ricardo Mendes




    Fontes e Bibliografia de apoio

    • Annaes da Camara Municipal de São Paulo: 1915. São Paulo: --, 1915.

    • Annaes da Camara Municipal de São Paulo: 1916. São Paulo: Typographia Piratininga, 1916.

    • Annaes da Camara Municipal de São Paulo: 1921. São Paulo: Typographia Piratininga, 1921.

    • Annaes da Camara Municipal de São Paulo: 1922. São Paulo: Typographia Piratininga, 1922.

    • série Leis e atos do Município de São Paulo: 1892-1930
      (veja quadro-resumo arquivo PDF).


     
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    Liliane Schrank Lehmann

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