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PMSP/SMC/DPH
São Paulo, maio/junho 2007
Ano 2 N.12 

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  • MANUSCRITOS

  • Uma casa para Ercília Nogueira Cobra


    O pesquisador costuma ser obstinado e abnegado. Empenha-se, a todo custo, para encontrar o que procura. Às vezes, se decepciona com o resultado de suas buscas, mas não desanima. Outras vezes, no entanto, encontra algo que não procurava, e o inesperado se revela um verdadeiro achado. Mas esse achado só o será de fato se o pesquisador confrontar os novos dados com os milhares de informações armazenadas em sua memória e realizar as conexões corretas na hora certa. Caso contrário, tudo se perde a um simples virar de página.

    Com a finalidade de instruir o processo de tombamento de casas na Rua Dr. Gabriel dos Santos, em Santa Cecília, levantávamos os pedidos de alvará de construção dos imóveis apresentados à Prefeitura entre 1914, data de abertura e oficialização do logradouro, e 1921, data limite da Série Edificações Particulares, da Seção Técnica de Manuscritos. Entre os vários nomes de proprietários e construtores que encontramos, um nos chamou a atenção em especial, pela sua notoriedade. Em janeiro de 1921, “Victor Dubugras e Ernesto Dubugras, Engenheiros e Arquitetos” apresentavam planta e requerimento para a obtenção de licença “para construir um prédio destinado a moradia [...] na rua Gabriel do Santos no 19.” (Houve um erro na identificação do número do lote. O correto seria 21 e não 19). Cerca de um mês depois, a Prefeitura concedeu o alvará para a construção de um sobrado de linhas neocoloniais. Em agosto do mesmo ano, requerimento assinado por Victor Dubugras & Filhos foi apresentado à Prefeitura, agora para obter “licença para construir garage nos fundos do terreno situado na rua Gabriel dos Santos no 21”.

    Projeto de Dubugras & Filhos para uma garagem nos fundos do no 21 da Rua Dr. Gabriel dos Santos n.1921

    Projeto de Dubugras & Filhos para uma garagem nos fundos do no 21 da Rua Dr. Gabriel dos Santos n.1921
    Projeto de Victor e Ernesto Dubugras para a residência de Ercília Nogueira Cobra na Rua Dr. Gabriel dos Santos. 1921.
    Observe que o projeto é apresentado aqui em duas pranchas
    em função da dificuldade de reprodução.
    Acervo: AHMWL/DPH/SMC


    Projeto residência - rua Dr. Gabriel dos Santos n.81
    Projeto de Dubugras & Filhos para uma garagem nos fundos do no 21 da Rua Dr. Gabriel dos Santos. 1921.
    Acervo: AHMWL/DPH/SMC

    Victor Dubugras (Flèxe, França, 1868 – Rio de Janeiro, 1933) concluiu os estudos em Arquitetura na Argentina em 1890, onde passara grande parte da infância e da adolescência. No ano seguinte, radicou-se em São Paulo, onde atuou como professor na Escola Politécnica e na Escola de Belas Artes. Como arquiteto Dubugras se destacou, sobretudo, por suas obras públicas. Projetou edifícios em estilo neogótico, como os Grupos Escolares de Botucatu e São Manuel. Adotou o Art Nouveau para o projeto com que entrou no concurso para a construção do Teatro Municipal do Rio de Janeiro, de 1904, e deixou-se influenciar pelo protomodernismo inglês de fins do século XIX e do inicio do XX na excepcional Estação de Mairinque, na Estrada de Ferro Sorocabana, de 1906. Se Ricardo Severo foi o mentor intelectual do Neocolonial luso-brasileiro, Dubugras foi quem mais se aplicou ao seu desenvolvimento em São Paulo. A fase colonial de Dubugras começou em 1914, período no qual projetou algumas edificações em Santos e em São Paulo. Nesse período, surgiram as encomendas do governo de Washington Luís para os pousos no Caminho do Mar e a reformulação do Largo da Memória, inaugurados em 1922. Os projetos do arquiteto naturalizado brasileiro para a Rua Dr. Gabriel dos Santos, portanto, se inseriam neste período da sua produção. Detalhes da fachada do sobrado lembravam elementos decorativos presentes no pórtico do Largo da Memória.

    E quanto ao proprietário da casa? Nas primeiras páginas dos dois processos, bem como nas plantas apresentadas, figurava a assinatura regular e legível de Ercília Nogueira Cobra. Quem seria e o que faria Dona Ercília? Pela concepção dos espaços da residência, poderíamos supor tratar-se de uma jovem viúva de classe média alta, empenhada na construção de uma nova casa para si e seus filhos. Teria ela filhos pequenos, que precisassem dos préstimos de um chauffeur para levá-los à escola em seu automóvel particular? O nome não era estranho... Acionando nossos arquivos de memória, localizamos uma antiga ficha de leitura, que nos remetia a um artigo publicado pela historiadora Maria Lúcia Mott nos Cadernos de Pesquisa da Fundação Carlos Chagas, sob o título “Biografia de uma revoltada: Ercília Nogueira Cobra”. O renomado Victor Dubugras, portanto, projetara um sobrado e uma garagem para uma pioneira do movimento feminista no Brasil!

    Projeto residência - rua Dr. Gabriel dos Santos n.81
    Requerimento solicitando licença para construção de moradia situada na Rua Dr. Gabriel dos Santos nº19 (de fato, nº 21).
    Com as assinaturas de Victor Dubugras e Ercília Nogueira Cobra, 1921. Acervo: AHMWL/DPH/SMC

    Ercília Nogueira Cobra nasceu em Mococa, São Paulo, em 1891. Seu pai era mineiro de Baependi e a mãe pertencia a uma rica família de fazendeiros paulistas. Após a morte do pai, a vida da família sofreu forte abalo. Ercília e sua irmã Estela, filhas mais velhas do casal, foram recolhidas ao Asilo Bom Pastor, no bairro do Ipiranga, em São Paulo. Ercília diplomou-se professora pela Escola Normal da Praça da República em 1917, destacando-se por seu desempenho e ascendência sobre as colegas, provavelmente, por ser mais velha. Quando normalista, teria entre 23 e 27 anos de idade. Educada e culta, compartilhava as idéias correntes no começo dos anos 1920 pelos intelectuais Modernistas e teria convivido com alguns deles. Com o escritor Oswald de Andrade, teria um parentesco por parte de pai.

    Ercilia Nogueira Cobra, 1929
    Retrato de Ercília Nogueira Cobra.
    Rio de Janeiro, 1929.









    Fonte: MOTT, Maria Lúcia de Barros. Biografia de uma revoltada: Ercília Nogueira Cobra. Cadernos de Pesquisa. São Paulo, Fundação Carlos Chagas, n.58, agosto de 1986. Figura da p.98.

    É considerada a primeira feminista brasileira, sobretudo pela denúncia da exploração sexual e do trabalho da mulher no pequeno ensaio intitulado Virgindade Anti-hygienica, publicado por Monteiro Lobato em 1924, e no romance Virgindade inútil, de 1927, cuja edição foi paga pela autora. Nos livros, Ercília denunciava a situação de opressão social e sexual em que viviam as mulheres e, por essa razão, foram considerados ofensivos na época. Virgindade Anti-hygienica foi apreendido pela polícia, sob a acusação de pornográfico. Leitura não recomendável para moças de boas famílias. Nos anos 20, Ercília esteve na França, no Rio de Janeiro e em Buenos Aires. Durante o Estado Novo, foi presa e torturada em mais de uma ocasião. Refugiou-se em Caxias do Sul, onde manteve um cabaré. Desde então, seu paradeiro se tornou desconhecido.

    Outro passeio pela memória e uma nova dúvida surgia. Não conseguíamos associar o projeto de Dubugras a nenhuma das casas da Dr.Gabriel do Santos. Teria sido demolida? Mas eis que nos chegam mais documentos, solicitados junto ao Arquivo Municipal de Processos, e a dúvida se desfez.

    Em junho de 1922, Sebastião Felix de Abreu e Castro, proprietário do mesmo lote na Rua Dr. Gabriel dos Santos, apresentou pedido de alvará de “construção de moradia” à Prefeitura, com base em projeto de F. Sales Malta Júnior & H. J. Guedes. Que razões teriam levado Ercília Nogueira Cobra a vender o terreno em Santa Cecília e a desistir da construção de sua casa? Provavelmente, foi por essa época que desistiu de seus sonhos pequeno-burgueses ligados à família e à propriedade para se lançar na aventura que a levaria, anos depois, a se perder em Caxias do Sul... Em vez de contribuir com uma informação a mais na biografia de Ercília, acrescentávamos mais um mistério, entre os muitos que cercam sua trajetória.

    Algo aconteceu ao Sr. Sebastião de Abreu e Castro, pois também ele vendeu sua propriedade, repassando-a ao pintor Antonio Rocco (Amalfi, Itália, 1880 – São Paulo, 1944). Com base em projeto de João Marvillo, Rocco, fundador do movimento conhecido como Escola Novíssima, solicitou o alvará de construção de uma residência em 1924. Dois anos depois, pediu autorização para construir uma garagem e, mais tarde, uma adega. Autor da capa da revista A Cigarra, sucesso editorial nos anos 20, e da tela Os emigrantes (c.1910), pertencente ao acervo da Pinacoteca do Estado, Rocco deve ter desfrutado de sua casa em Santa Cecília durante longos anos. Hoje, no n.º 167 da Dr. Gabriel dos Santos, antigo 21, funciona um pequeno restaurante, onde se pode conversar com os amigos e apreciar um saboroso café expresso.


    Fátima Martin Rodrigues Ferreira Antunes
    Seção Técnica de Levantamentos e Pesquisa
    Divisão de Preservação/DPH

    Fátima Antunes, socióloga da Seção Técnica de Levantamento e Pesquisas da Div. de Preservação, do DPH, foi convidada a falar sobre o tombamento de imóveis em Santa Cecília, para o qual teve de consultar a documentação conservada no AHMWL.



    Fontes e bibliografia
    • AMARAL, Aracy. Artes plásticas na Semana de 22. Subsídios para uma história da renovação das artes no Brasil. São Paulo: Perspectiva, 1979.

    • MOTT, Maria Lúcia de Barros. Biografia de uma revoltada: Ercilia Nogueira Cobra. Cadernos de Pesquisa (Fundação Carlos Chagas). São Paulo (58): 89-104, agosto 1986.

    • REIS, Nestor Goulart. Victor Dubugras. Precursor da Arquitetura Moderna na América Latina. São Paulo: EDUSP, 2005.

    • SÃO PAULO (Cidade). PMSP – Diretoria de Obras e Viação - Edificações Particulares, 1921. Caixa G-1, Documentos 3 (Construção de um prédio) e 4 (Construção de garage).

    • SÃO PAULO (Cidade). PMSP – Secretaria Municipal de Gestão. Arquivo Municipal de Processos. Processos nos 2005 – 0.324.544 – 1 (nº de capa: 0.058.015 / 1922), 2005 – 0.324.501 – 8 (nº de capa 0.055.284 / 1924), 2005 – 0.324.508 – 5 (nº de capa 0.009.864 / 1926) e 2005 – 0.324.517 – 4 (nº de capa: 0.024.434 / 1929).



    Para citação adote:

    ANTUNES, Fátima Martin Rodrigues Ferreira. Uma casa para Ercília Nogueira Cobra. INFORMATIVO ARQUIVO HISTÓRICO MUNICIPAL, 2 (12): maio/junho 2007 <http://www.arquivohistorico.sp.gov.br>

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