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PMSP/SMC/DPH
São Paulo, maio/junho 2007
Ano 2 N.12  

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  • ESTUDOS & PESQUISAS

  • O tombamento de antigas residências em Santa Cecília


    Quando Maria Helena de Salles Penteado solicitou o tombamento do imóvel de nº 142 da Rua Doutor Gabriel dos Santos, em Santa Cecília, pretendia preservar a bela casa de linhas neocoloniais onde passara a infância e parte da juventude, entre 1938 e 1957. Para ela, a sólida construção, ornamentada com vitrais coloridos e uma escadaria de madeira procedente do Liceu de Artes e Ofícios de São Paulo, evocava ternas lembranças do seu quarto de menina, das brincadeiras de criança junto ao pé de uvaia, do tesouro escondido no quintal – segredo guardado a sete chaves –, da família reunida em torno da mesa de jantar ao lado de um painel de azulejos reproduzindo a “Última Ceia”, de Leonardo da Vinci. Mais que a memória da família, seu gesto contribuiu para a preservação de parte da memória do bairro de Santa Cecília, representada por outras oito residências e pelo edifício que abrigou o extinto Ginásio São Paulo, remanescentes da primeira ocupação da rua ocorrida no início do século passado.

    Ao vistoriar a antiga casa dos Sales Penteado, técnicos do Departamento do Patrimônio Histórico constataram que o imóvel integrava um conjunto de edificações, todas elas situadas no mesmo trecho da Rua Doutor Gabriel dos Santos, entre a Avenida General Olímpio da Silveira e a Alameda Barros; edificações que ainda preservavam suas características arquitetônicas originais, compondo assim uma ambiência do que outrora fora certa parcela do bairro de Santa Cecília. Os programas de necessidades das casas e da escola ainda expressavam a mentalidade e a forma de morar da classe média paulistana no período entre guerras (1919 – 1939), bem como o uso de determinados materiais e técnicas construtivas.

    Rua Dr. Gabriel dos Santos n.142 - 2006
    Casa n.º142 da Rua Dr. Gabriel dos Santos. Construção neocolonial.
    Foto: Lilian B. Alba, 2006

    O processo de tombamento, no entanto, não é algo simples de ser efetuado. Começa com uma solicitação dos cidadãos, mas requer um trabalho minucioso de pesquisa que inclui a verificação de dados e/ou fatos históricos, a relação entre o traçado urbano e o sítio original de implantação, as relações mantidas entre os imóveis e o sítio onde se inserem com o intuito de revelar suas relações culturais e/ou afetivas; se o imóvel alvo da solicitação já foi de algum modo inventariado anteriormente; e, no tocante aos conjuntos urbanos, é necessário buscar nas construções que lhes são contemporâneas as relações espaciais estabelecidas primitivamente. Dependendo do resultado da pesquisa, o parecer técnico será favorável ou não a uma abertura de processo de tombamento. Caso favorável, dá-se início a uma nova etapa de estudos, ainda mais aprofundados.

    Adjacências da Rua Doutor Gabriel dos Santos: caracterização sócio-espacial

    O último trecho do bairro de Santa Cecília a ser urbanizado pertencia à Chácara das Palmeiras. A empresa denominada Caisse Générale de Prêts Fonciers et Industriels comprara e regularizara a parte ocidental da antiga propriedade nos primeiros anos do século XX. O loteamento e a abertura das ruas ocorreram das bordas para o centro. Entre 1907 e 1913, foram abertas as Ruas Conselheiro Brotero, Veiga Filho, Albuquerque Lins e das Palmeiras. Por fim, vieram as Ruas Rosa e Silva e Dr. Gabriel dos Santos. Ao contrário da parte mais antiga do bairro, que apresenta irregularidades no traçado urbano, a área de ocupação posterior segue um plano mais uniforme, com a presença de quarteirões retangulares e extensos, sobretudo nas ruas paralelas à Avenida Angélica, entre a Alameda Barros e a Rua Baronesa de Itu. Aqui, os terrenos são mais amplos e com testadas mais largas. Com variações, as casas aí construídas se apresentavam isoladas nos lotes, espaçadas entre si e cercadas de jardins, lembrando a conformação do vizinho bairro de Higienópolis. Reproduziam, assim, a antiga feição das chácaras de moradia, preservando uma identidade social e cultural própria das classes sociais mais abastadas, da qual descendiam seus moradores.

    A formação das classes médias brasileiras ocorreu entre o final do século XIX e as primeiras décadas do XX. Seus integrantes ocupavam posição intermediária na estrutura social, entre as elites dominantes, das quais dependiam, e as grandes massas populares. Seus membros pertenciam a famílias tradicionais decadentes, algumas delas descendentes da oligarquia cafeeira da época imperial, ou de seus ramos mais empobrecidos. Também incluía, em menor número, imigrantes europeus que vieram para o Brasil trazendo pequenas fortunas para, aqui, “fazerem a América”; altos funcionários públicos, profissionais liberais e comerciantes bem sucedidos. De qualquer modo, as classes médias, tal como se apresentavam nesse período, estariam mais próximas de uma pequena burguesia do que das classes médias assalariadas, tal como as conhecemos hoje.

    Por meio de levantamento dos pedidos de alvará de construção para os lotes da Rua Doutor Gabriel dos Santos, documentos que integram a Série Edificações Particulares do Arquivo Histórico Municipal, complementado por documentos semelhantes pertencentes ao acervo do Arquivo Geral de Processos da Secretaria Municipal de Gestão, pudemos identificar proprietários, arquitetos e construtores responsáveis pelas edificações. Esse conjunto documental também permitiu a análise da concepção dos espaços internos e externos das casas, de acordo com os usos que se pretendia dar a eles. Os memoriais descritivos também registram o emprego de materiais de construção correntes na época.

    Projeto residência - rua Dr. Gabriel dos Santos n.81
    Projeto de Raphael Pangliuca para a residência de Vasco Corte Real, na Rua Dr. Gabriel dos Santos, n.º 5 (atual n.º 81), 1920.
    1920
    Acervo: AHMWL/DPH/SMC


    Rua Dr. Gabriel dos Santos n.81
    Casa n.º 81: Batalhão da Policia Militar.
    O projeto construído difere bastante do aprovado, o que era então considerado normal.
    Foto: Lilian B. Alba, 2006


    O morar da classe média paulistana

    Entre o final do século XIX e o começo do século XX, a elite cafeeira adotou um novo modo de morar, mais adequado à modernidade que desejavam imprimir à cidade, em substituição à rusticidade da São Paulo colonial. “Morar à francesa” implicava introduzir e vulgarizar, novos materiais de construção e novas técnicas construtivas. O tijolo substituía a taipa, sendo acompanhado pelas telhas francesas, pelas telhas de ardósia, pelo pinho de Riga, etc. Empresas de importação se instalaram na capital paulista desde o final do século XIX, beneficiadas pela construção da estrada de ferro entre São Paulo e Santos.

    Tendo à disposição novos materiais, os programas ou partidos arquitetônicos das edificações também foram modificados. Nas casas ricas construídas pelas elites do café, observamos a “invenção” da copa e a instalação do quarto da “criada” dentro de casa, ao lado da cozinha. Algumas vezes, nos grandes palacetes, as cozinhas ficavam no porão de alto pé direito, sendo ligadas à sala de jantar térrea através de escada, que desembocava num pequeno cômodo intermediário, sucedâneo da copa, identificado pelo nome afrancesado de office. Surgem também a despensa e o quarto de engomar. Inicia-se certo zoneamento moderno das funções de habitação, com novidades como a “sala da senhora”, o jardim de inverno, a sala de bilhares, o ”gabinete”, espécie de escritório, e também o veículo de tração animal intra-muros, luxo e conforto impossível até então nas casas paulistanas urbanas de taipa, por mais ricas que fossem, sempre geminadas de ambos os lados. Surgem ainda os largos portões laterais em áreas livres em um dos flancos da edificação.

    Com a eclosão da Primeira Grande Guerra (1914-1918), cai a exportação de café e a importação de produtos industrializados. A indústria nacional, especificamente a paulista, passa a suprir a demanda do mercado interno, ofertando produtos nacionais similares aos importados. Na construção civil, o ferro fundido e o aço foram substituídos pelo concreto, o pinho de Riga pelo pinheiro do Paraná, cedro ou peroba.

    Este processo coincide com o despontar de uma nova classe social; uma classe média diferenciada, formada por comerciantes bem sucedidos, funcionários públicos de alto escalão, imigrantes enriquecidos, que ainda não possuía o capital necessário para usufruir o status da elite, mas procurava se instalar próxima aos bairros elegantes da classe alta (a Rua Dr. Gabriel dos Santos localiza-se bem próxima ao bairro de Higienópolis), em lotes tradicionais, de preços moderados. Será esta classe média que alterará o partido arquitetônico das residências medianas de então, buscando condições de conforto semelhantes às da elite. As residências passam a ser isoladas, ao menos de um dos lados do terreno. Se térreas, seus dormitórios eram ligados diretamente à sala, agora centralizadas. Não obstante tais alterações, outras “novidades” foram introduzidas. Com o advento do automóvel, surgiu no local da velha cocheira a garagem e, com esta, a edícula, construção desvinculada da construção principal e situada no fundo do lote. Surgiu mais um espaço de circulação, o hall – vestíbulo de distribuição que permitiu circulações independentes, oferecendo então o máximo de conforto nas casas bem postas que tinham bem definidas três zonas: de serviço, de estar e de repouso. O hall permitia que se fosse de uma zona a outra sem que se cruzasse a terceira. No hall ficava a escada de ligação aos quartos, nos casos dos palacetes assobradados. Introduziu-se a moda da entrada íntima lateral, pela passagem de acesso do automóvel à garagem. A sala de visitas, sempre de frente, também possuía portas para o exterior, destinadas somente aos visitantes de cerimônia.

    Construídas entre os anos 1920 e 1930, o conjunto de casas da Rua Dr. Gabriel dos Santos, remanescentes da primeira ocupação da área, oferecem uma bela amostragem dos estilos arquitetônicos mais utilizados naquele período: o neocolonial nas suas versões luso-brasileiro e Missões ou hispano-americano, o Art Déco e o Eclético. Documentam também a evolução das técnicas construtivas e o emprego de novos materiais de construção, hoje inexistentes ou em desuso.

    Ao estilo neocolonial luso-brasileiro nos remetem a casa de nº 88, atualmente sede de uma escola de pós-graduação em Direito Constitucional, bem como a de nº 142, que deu início ao processo de tombamento e hoje abriga uma escola livre de cinema. Ao estilo neocolonial hispano-americano ou Missões, identificamos a de nº 91, ocupada por uma imobiliária, e as de n.°s 214 e 211, ainda usadas como residências. A de n.º 81 não possui um estilo definido. É ocupada por um Batalhão da Polícia Militar e se destaca na paisagem urbana por sua implantação no lote. Também sem estilo definido é a de n.º 124. Sua entrada alpendrada, com cobertura curva metálica apoiada em colunas caneladas, chama a atenção do observador, apesar do alto muro levantado pelo centro de cultura judaica aí instalado, o que prejudica sua visibilidade. O café que funciona na residência de n.º 167, apesar de seu pavimento térreo totalmente descaracterizado, mantém no pavimento superior as janelas em arcos mouriscos. A de nº 196 conserva intactas suas características: eclética, mescla elementos de vaga inspiração classicista com outros de índole pitoresca (pequeno telhado suportado por mãos francesas de madeira trabalhada).

    Rua Dr. Gabriel dos Santos n.196
    Casa n.º 196. Arquitetura eclética.
    Foto: Lilian B. Alba, 2006

    Finalmente, o edifício de n° 30. Inaugurado em 1940, para abrigar o Ginásio São Paulo, depois Colégio São Paulo, acolheu também o pioneiro Colégio de Aplicação da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras da Universidade de São Paulo, entre 1957 e 1969. No prédio funciona, hoje, a Unidade Higienópolis de pós-graduação, da Universidade de Guarulhos (UnG). Sua fachada exibe elementos Art Déco; as salas de aula apresentam o pé- direito alto e as distribuições originais. O emblema da antiga escola ainda se encontra no hall de entrada e num vitral da porta que leva ao pátio interno.

    A maioria dos imóveis perdeu a função residencial, e um novo uso se estabeleceu na rua. Escolas, casa de repouso, imobiliária, restaurante, cabeleireiro, unidade policial se mostraram usos compatíveis com os edifícios, responsáveis por sua conservação. Exceção ao restante do bairro, o trecho da rua que motivou o estudo de tombamento resistiu ao processo de verticalização ocorrido em Santa Cecília, provavelmente pela presença de casas de médio padrão, que favoreceu sua adaptação ao uso comercial e institucional. Exceção muito feliz, que contribuiu para preservar a ambiência de décadas atrás.

    Maria Helena de Salles Penteado conta que os moradores se conheciam e que os portões das casas permaneciam abertos. As crianças brincavam na rua de pega-pega, esconde-esconde, andavam de bicicleta e circulavam livremente pelas casas. Os adultos andavam à noite na rua, “tomando a fresca” e, por vezes, colocavam cadeiras nas calçadas para uma conversa mais demorada. Como na infância de Maria Helena, a rua ainda apresenta certa tranqüilidade, o suficiente para permitir que crianças brinquem de bicicletas nas calçadas. As pessoas que trabalham nas várias casas se conhecem e a solidariedade entre elas faz lembrar as tradicionais relações de vizinhança.


    O Conselho Municipal de Preservação do Patrimônio Histórico, Cultural e Ambiental da Cidade de São Paulo (CONPRESP) abriu processo de tombamento para o conjunto de edificações da Rua Doutor Gabriel dos Santos pela Resolução no 3 de 2005. Um ano depois, tombou o conjunto pela Resolução no 1 de 2006, reconhecendo-o como importante bem cultural da cidade de São Paulo.


    Fatima Martin Rodrigues Ferreira Antunes
    Seção Técnica de Levantamentos e Pesquisa


    Lilian Bueno Alba
    Seção Técnica de Critica e Tombamento


    Fontes e bibliografia
    • CHILVERS, Ian. Dicionário Oxford de Arte. São Paulo: Livraria Martins Fontes Editora Ltda, 2001. 2ª edição.

    • COSTA, Maria Elisa (org.). Com a palavra Lucio Costa. Rio de Janeiro: Aeroplano, 2001.

    • D’ALAMBERT, Clara Correia. Manifestações da arquitetura residencial paulistana entre as Grandes Guerras. São Paulo: tese de doutoramento FAU-USP, 2003.

    • JORGE, Clóvis de Athayde. Santa Cecília – contrastes e confrontos. São Paulo: DPH, 2006. Coleção História dos Bairros de São Paulo.

    • LEMOS, Carlos A C. Alvenaria Burguesa: breve história da arquitetura residencial de tijolos em São Paulo a partir do ciclo econômico liderado pelo café. São Paulo: Nobel, 1989. 2ª edição.

    • MARCÍLIO, Maria Luiza. História da escola em São Paulo e no Brasil. São Paulo: Imprensa Oficial do Estado de São Paulo: Instituto Fernando Braudel, 2005.

    • MARCONDES, Luiz Fernando. Dicionário de Termos Artísticos. Rio de Janeiro: Edições Pinakotheke, 1998.

    • MENDES, Renato da Silveira. Os Bairros da Zona Sul e os Bairros Ocidentais. In AZEVEDO, Aroldo de. A cidade de São Paulo. Estudos de Geografia Urbana. São Paulo: Cia. Ed. Nacional, 1958.

    • SÃO PAULO (Cidade). PMSP – Diretoria de Obras e Viação - Edificações Particulares. Processo no 230 340 – G, 1920. Assunto: Construção de um prédio no no 5 da Rua Dr. Gabriel dos Santos.

    • SÃO PAULO (Cidade). PMSP – Secretaria Municipal de Gestão. Arquivo Municipal de Processos.

    • WARDE, Mirian Jorge. O Colégio de Aplicação da Universidade de São Paulo. In GARCIA, Walter E. Inovação Educacional no Brasil. Problemas e perspectivas. São Paulo: Cortez Ed., 1980. p.101-131.

    • WEFFORT, Francisco Correia. O populismo na política brasileira. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1980.


    Para citação adote:

    ANTUNES, Fatima Martin Rodrigues Ferreira, ALBA, Lilian Bueno. O tombamento de antigas residências em Santa Cecília. INFORMATIVO ARQUIVO HISTÓRICO MUNICIPAL, 2 (12): maio/junho 2007 <http://www.arquivohistorico.sp.gov.br>

     
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