O documento legal é extremamente importante por estabelecer uma padronização operacional,
indicando aspectos da prática de projeção não registrados na historiografia do cinema brasileiro.
Esse texto é aparentemente o único do gênero no
âmbito estadual, em especial se lembrarmos que caberia aos municípios legislar sobre as
edificações. Os demais que o sucedem, na esfera estadual, adotarão como orientação crescente ao longo do tempo,
no tocante à segurança contra
incêndios, a organização de grandes classes de usos. Assim, por exemplo, na atualidade,
o decreto estadual nº 56.819, de
10 de março de 2011, que institui o Regulamento de Segurança contra Incêndio das edificações e áreas de
risco, sistematiza de modo abrangente e extenso todos os gêneros de ocupações, sem menção direta a
cinema ou depósito de filmes, mas adota conjuntos genéricos como locais de reunião, depósitos de materiais combustíveis etc.
Na esfera municipal, na cidade de São Paulo, as primeiras referências na legislação que permitem
identificar práticas ou normas para instalações são indiretas. Em outubro de 1909, a lei nº 1.258, que
"orça a receita e fixa a despesa do Município de S. Paulo para o exercício de 1910", traz no artigo
16, sobre alterações na tabela de Imposto de licença a adoção de valores mensais diferenciados para salas de
cinema, no centro da cidade, com um projetor (500$000) ou mais de um projetor (800$000).
A ocorrência indica a provável presença então de estabelecimentos de maior envergadura.
Dois projetores permitem
a exibição de filmes com maior metragem, exatamente na década em que os programas começam a
apresentar filmes de maior duração, ou simplesmente realizar sessões com diversos filmes, sem necessidade de
interrupção para troca de rolos.
Outras inserções similares ocorrem ao longo dos próximos quinze anos. Em 1924, a legislação municipal
registra última ocorrência do gênero na lei nº 2.768, que igualmente orça a receita e fixa a despesa para o exercício
de 1925. O artigo 10, que aborda modificações na tabela de imposto de licença, traz indicação similar, mas
não deixa de introduzir novo dado - número de sessões por dia:
Cinematógrafos:
No perímetro central – com mais de um aparelho realizando duas sessões diárias, por mês... 1:200$000
Idem, com um só aparelho, realizando duas sessões diárias, por mês... 1:000$000
Idem, por dia, cada sessão... 30$000
Data de fevereiro de 1916 o texto legal que regula de modo amplo a construção de novas salas de exibição
na capital e estabelece orientações para adaptação das existentes. A lei n.º 1.954 terá consequências
a curto prazo, reduzindo o ritmo de expansão do circuito exibidor e alterando o perfil dos empreendimentos
frente às novas exigências. Por quase uma década fiscais e engenheiros enfrentarão um longo caminho
para ajustar os novos projetos ou reformas no setor à legislação.
Deixando de lado os parâmetros relativos ao edifício em seu conjunto, como rotas de fuga (adotando um termo
atual) ou afastamentos laterais, podemos ressaltar aquelas orientações que enfocam diretamente a cabine
de projeção e que podem afetar eventualmente o sistema de projeção. Todas as referências dizem
respeito à prevenção de incêndio:
Artigo 16 – A caixa do aparelho ou cabine do operador será toda ela de material incombustível,
sobre quatro pilastras. Ficará sempre a ao fundo da sala de espetáculos, podendo, no entanto,
ficar à frente, quando na parte posterior houver saída permanente e ampla para a via pública.
Terá somente as aberturas necessárias para o manejo do operador, projeções e uma porta que será
colocada lateralmente ou atrás. Esta porta será de ferro inteiro ou em forma de rolo, de modo que,
em caso de combustão de uma fita ou película, o operador possa sair, fechá-la ou desdobrá-la,
evitando a saída de fumaça e gazes da celulóide das fitas. O acesso à cabine será feito por
meio de uma escada de ferro. Em baixo do aparelho, haverá sempre um vasilhame com água,
para que em caso de combustão possa a película ou fita cair sobre a água e assim evitar-se
a propagação do fogo.
Enquanto o decreto estadual, de 1909, enfocava mais os procedimentos dentro da cabine, destacando
equipamentos ou acessórios associados ao projetor, com o vasilhame para coleta de
eventual trecho de película em combustão, a lei municipal de sete anos depois foca
o conjunto da cabine, estabelecendo sua
incombustibiliade, procurando isolar o foco de incêndio. As condições de trabalho do operador
e seu assistente eventual, apenas tomando os textos legais, parecem precárias, estimulando a
especular sobre eventuais acidentes de trabalho, em especial aqueles mais corriqueiros
nem sempre reportados.
Caso raro registrado tem lugar, apenas como exemplo, no Cinema Paraíso, à Rua Vergueiro n.362. Em 27 de
dezembro de 1912, o projecionista Virgílio Costa, durante a sessão das 21 horas, perde parte do dedo
na engrenagem do aparelho de projeção, como indica o verbete daquela sala na base
online:
.
Completando a descrição dos parâmetros relativos à cabine, o artigo 14 complementa:
"Junto à tela, ao lado interno, haverá sempre um depósito de água com capacidade suficiente
para acudir a qualquer acidente. Além disso, para os primeiros socorros, em caso de incêndio, devem os
cinematógrafos estar munidos dos necessários aparelhos, ligados à rede geral de cidade."
O texto original da lei, depositado no AHSP, traz ainda, ocorrência rara, uma esquema da cabine, aqui
reproduzido na página de abertura do
Informativo, que permite compreender o sistema
de retroprojeção.
O sistema de retroprojeção será amplamente empregado na capital até a década de 1920,
embora a lei apenas cristalize como norma uma prática
local. As salas de espera nas laterais, consideradas como desejáveis, por permitir maior controle de
circulação e separação entre fluxos de entrada e de saída, continuarão raras em São Paulo. O temor de um incêndio
parecia estabelecer quase como "senso comum" o esquema proposto, assim o emprego da retroprojeção é uma
decorrência. Seria o caso de lembrar comentário do vereador Luiz Fonceca, relator da comissão de Higiene na
sessão de 3 de janeiro de 1916, na discussão do projeto:
Outra casa de espetáculos que eu também frequento, o Pathé Palace, fez uma innovação
(não sei si de acôrdo com a polícia) e que é muito perigosa: a cabina do operador, que estava colocada nos
fundos do palco, portanto longe da plateia, presentemente passou para a plateia em cima justamente da porta que dá ingresso aos espectadores.
Fonte importante para recuperar um pouco das práticas operacionais e estrutura ao redor da cabine
são esses registros dos debates da lei reguladora de 1916, do qual retiramos o comentário acima.
As sessões sobre a proposta tem início em janeiro
de 1915. No dia 4, iniciando o ano, fica evidente que o incêndio do velho Polytheama, cujos laudos tinham
sido publicados, constitui um dos motivos da apresentação da proposta sumária com quatro artigos.
Surge ai o relato do incêndio e descobrimos que o projetor empregava um "motor-gerador", instalado
em baixo do palco que transformava a energia elétrica de corrente alternada para contínua para uso
da "lanterna de projeção do aparelho cinematográfico". Isso era necessário pois um dos parâmetros para a
fonte de luz era sua estabilidade, de modo a evitar a oscilação de intensidade luminosa
durante a projeção.
Fica assim caracterizado que o conjunto da cabine implica em instalações complementares: aqui
o motor gerador,
mais adiante como veremos a sala para rebobinamento dos filmes exibidos e eventual depósito de filmes.
Caso raro como no projeto de 1926 para o Cine Cambuci, na Rua Climaco Barbosa, a prancha revela na
cabine, além do quadro de luz indicado também em outras ocorrências,
a existência de "acumuladores" (?).
Como a legislação municipal era restrita à edificação, quando muito exigindo algum detalhamento
relativo à prevenção de incêndios, as pranchas apresentadas raramente trazem indicações desse gênero.
A regulamentação da lei nº 1.954 é aprovada em 23 de fevereiro de 1916 pelo ato nº 283. O novo texto introduz
dados suplementares como, por exemplo, ao estabelecer o isolamento da cabine no tocante à incombustibilidade indicar
suas dimensões mínimas 2 x 2 metros, como também pé direito mínimo de 2,5 metros. Os números surpreendem pois
as cabines do período são menores ainda, mesmo em salas de grande porte, espaço a ser dividido
pelos dois projetores e o operador, sem pensar em eventual ajudante.
|
Teatro Avenida (depois Moulin Rouge etc), à Rua São João,
na altura do Largo do Paiçandú.
Detalhe da prancha.
Ano do projeto: 1918
Acervo AHSP
|
As pranchas indicam que a cabine, ao fundo do palco conforme sistema de retroprojeção, obedece às dimensões mínimas exigidas pela lei normativa de 1916.
O projetor, embora esboçado, surge com o tubo de exaustão do ar superaquecido pelo sistema de iluminação, embora não estejam indicadas as bobinas de filmes.
O desenho não deixou, contudo, de incluir o quadro de energia elétrica
para a cabine. As paredes prevêem a incombustibilidade, mas, embora a legislação exija, os projetos nunca
detalham a posição correta das aberturas ou seus elementos de fechamento, indicados genericamente nos memoriais como
porta metálica, no caso do acesso à cabine.
|
O artigo 30 manterá orientação introduzida anteriormente, explicitando claramente a finalidade:
"Em baixo do aparelho, haverá sempre um vasilhame com água, para que em caso de combustão possa a
película ou fita cair sobre a água e assim evitar-se a propagação do fogo." O que surpreende é
que as condições de operação e os próprios aparelhos nesse período passam por mudanças, com maior
complexidade e apuro dos mecanismos, aumento do tamanho das bobinas... Em parte, as pranchas
integrantes do acervo trazem em suas representações esquemáticas uma diversidade crescente de
projetores. Primeiro, como na imagem de abertura, pequeno aparelho com uma bobina superior caindo o filme
exibido no solo ou cesto de coleta, exigindo assim o rebobinamento; depois, a presença de bobina
coletora, a chaminé de exaustão do ar aquecido ao redor da lâmpada etc
Essa regulamentação estabelece ainda a separação da cabine da área destinada a depósito de filmes, no artigo 31: "A cabine não poderá servir de depósito de quaisquers objetos e especialmente de fitas,
a não ser as destinadas à sessão, as quais devem estar acondicionadas em invólucro incombustivel." E acrescente em
parágrafo único: "É proibido que fiquem junto à cabine comodos de morada."
Em complementação, a documentação relativa à aprovação de projetos pela municipalidade possibilita identificar em raros casos,
considerando que a fiscalização de prevenção a incêndios é competência do Estado, a ocorrência de indicações
de equipamentos de proteção, sem maiores detalhes. Em 1912, por exemplo, o projeto do cinema Avenida, à Avenida
Rangel Pestana, apresenta junto ao palco, a indicação de "Quarto isolador e depósito de água". No mesmo ano,
a prancha relativa ao Flor, à Rua da Conceição indica "aparelhos para incêndio"; como registra também em
1912, o projeto para o Odeon, na Rua Duque de Caxias.
Bijou, Rua Guaicurus.
Ano do projeto: 1917
Acervo AHSP
|
|
O detalhe do corte longitudinal revela o interior da cabine, também em sistema de retroprojeção. Observe o
equipamento de projeção aqui em uma configuração que permanece por longo período: o conjunto ótico
separado do
corpo maior que contem a fonte de geração de luz e sistema de condensação. Entre os dois o sistema de transporte da película, aqui claramente identificado pelos rolos nas partes superior e inferior.
Note que a unidade
de geração de luz é representada com uma pequena chaminé na parte superior. Em outras ocorrências, essa
chaminé estaria ligada a um duto maior para exaustão mais adequada do ar super-aquecido de modo a reduzir o aquecimento
da própria cabine, espaço de trabalho do operador e eventual assistente.
|
O quadro apresentado caracteriza as condições de projeção entre nós no período do filme silencioso.
São tópicos que não mais serão abordados pela norma legislativa, que adota um postura mais generalizante.
O grande marco representado pelo adoção do Código de obras Arthur Saboya, lei que homenageia um dos
principais engenheiros municipais nas décadas de 1920 e seguinte, aprovado pela lei nº 3.427, de 1929,
adota por um lado parâmetros mais precisos para dimensionamento das plateias, saídas de emergência etc,
mas repete parâmetros, permanecendo por exemplo no artigo 394 (conforme
regulamentação aprovada pelo Ato n.983/1916) a mesma orientação estimulando o
posicionamento da cabine ao fundo da sala.
O texto traz detalhes que indicam a preservação do modelo teatral
nas salas, exatamente no mesmo período que elas adotam um novo
layout, abandonando as galerias e
camarotes, dando lugar ao balcão amplo. Em boa parte dos casos as salas deixam de ter
efetivamente um palco com estrutura
para espetáculos teatrais, adotando uma configuração mais próxima, quando muito, a do auditório.
O Código em questão exigirá isolamento dos depósitos de cenários, quando houver,
proibindo sua localização em baixo do palco. E passa a obrigar a apresentação para aprovação de
prancha com as instalações elétricas, indicando a "situação dos quadros, distribuição, número de lâmpadas,
sua força, etc". A fiação deve estar protegida "por meio de canos de metal ou cabo armado" e todos os
quadros (de chaves e fusiveis) igualmente protegidos em caixas de aço ou cabines de ferro.
O texto legal exige ainda que haja um circuito separado "para as luzes das portas, corredores e vestibulos e salas de espera".
De forma breve, observemos os focos que a legislação posterior desenvolve. Em 1955, a lei n.4.615, regulas
"as condições gerais das edificações", tomando como referência o ato 663, de 1934, que consolidara o Código Arthur
Saboya. O item 5 - Edifícios para fins especiais - inclui os tópicos 5.9.1 - Cinemas e teatros e 5.9.2 - Cinemas.
Os destaques comuns a teatros e cinemas ficam para o número de assentos, distribuição de poltronas, visibilidade, degraus nas áreas de
circulação, disposição da sala de espera e sanitários. Os cinemas devetem atender ainda a itens relativos
a dimensões da tela, além de itens referentes à cabine como dimensões
(4 x 3m de profundidade, com pé direito de 2,5m),
estanqueidade do ponto de vista de incêndio e a existência de compartimento para enroladeira.
Vinte anos depois, em 1975, a lei n.8.266 "aprova o Código de Edificações" e apresenta um capítulo dedicado
a usos culturais (capítulo III, artigos 338 a 343). A secção B desse capítulo, em seus dois artigos, é dedicada
aos cinemas. O foco cai sobre a sala de espera, larguras mínimas e visibilidade da tela. A cabine, cujas
dimensões mínimas crescem na altura, passando para 3,5 m, tem como nova exigência
o tempo de resistência ao fogo
no que toca ao isolamento e mantém a indicação do compartimento para enroladeira. O texto legal muda em sua forma,
enfoca claramente como conceitos segurança, higiene, conforto e visibilidade, e adota orientações mais
generalizantes em aspectos como ventilação e iluminação.
O Código de Obras e Edificações vigente na cidade de São Paulo data de 1992, estabelecido na lei n.11.228.
Agora não existem mais referências diretas à cabine de projeção, devendo as instalações atender aos parâmetros
genéricos da lei, estando sujeitas a regulamentos de segurança de incêndio como o mencionado no início. Os textos legais deixam de ser uma fonte documental para a memória do cinema.
Sua leitura permitiu, contudo, entender o desenvolvimento e normatização de princípios de uma
tecnologia de segurança desde
a década de 1910. Seu foco eleito é a circulação de usuários, a eliminação de gargalos que restringam o acesso,
a eliminação de interferências como desníveis e a adoção de práticas como portas de acesso abrindo para o
exterior
e exigência de saídas desimpedidas. Aspectos adicionais se imporão em intervalo longo de tempo como a adoção de cadeiras fixas
e mais adiante sinalização e iluminação de emergência, entre práticas consolidades
efetivamente apenas há pouco
mais de trinta anos, embora suas exigências datem de momento anterior.
Continua >
|
|
|
|
| |
Para citação adote:
MENDES, Ricardo. Cinema silencioso no acervo do AHSP:
contribuição para a história da tecnologia de projeção de imagem em movimento.
INFORMATIVO ARQUIVO HISTÓRICO DE SÃO PAULO, 8 (32): mar.2013
<http://www.arquivohistorico.sp.gov.br>