PMSP/SMC/DPH
São Paulo, abril/junho de 2011
Ano 6 N.29 

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  • ESTUDOS & PESQUISAS
  • Hospitais paulistanos: do século XVI ao XIX


    Eudes Campos
    Pesquisador da
    Seção Técnica de Estudos e Pesquisas



    | Período Colonial | Primeiro Reinado | Segundo Reinado | Primeira República | Notas | Fontes |


    Segunda metade do século XIX – Segundo Reinado


    Primeiros indícios de higienismo em São Paulo

    A partir dos anos 1850, o estado de coisas começa a mudar na cidade de São Paulo. Desde 1849, a Câmara passa a aplicar recursos provinciais nas obras públicas sob a sua responsabilidade. Tudo então era ainda muito incipiente, mas aos poucos os trabalhos públicos irão transformar a vida e a aparência da cidadezinha provinciana. A maior mudança verificada nessa etapa será no tipo de calçamento adotado nas ruas mais importantes da Capital, com a adoção do abaulamento do leito viário, apedregulhamento ou macadamização, construção de passeios e sarjetas laterais e, a partir de 1861, construção de um sistema subterrâneo de drenagem das águas pluviais. Essas obras públicas tinham fundamento higiênico, na medida em que o revestimento das vias públicas as isolava do solo produtor de miasmas, e serão em geral bem visíveis, por exemplo, em fotografias de autoria de Militão Augusto de Azevedo (1837-1905), tomadas entre 1862 e 1863. As constantes reivindicações de melhoramentos materiaes publicadas na imprensa diária paulistana em cartas abertas enviadas pela população, reproduzia, portanto, uma nova postura frente à realidade urbana, que vinha desde algum tempo, sendo observável na própria capital do Império
    59.

    Esses reflexos estavam diretamente ligados à revolução higiênica desencadeada no Velho Continente a partir dos meados dos Setecentos, fruto do Iluminismo e baseada em princípios neo-hipocráticos. Essa revolução, contemporânea da ascensão burguesa na Europa, e fundamentada em teorias médicas pré-microbianas que apontavam ser o meio ambiente fator fundamental para explicar muitas das doenças epidêmicas e endêmicas então conhecidas, manifestou-se na vida das pessoas de múltiplas formas, tanto no nível privado quanto no público: na valorização da cura pela águas minerais; na retomada do uso da água para o asseio corporal; na privatização das acomodações familiares no interior das residências; na introdução de espaço, ar e luz nas construções públicas e privadas; no isolamento dos edifícios em relação às divisas dos lotes, na concepção de novos partidos arquitetônicos para edifícios públicos (hospitais, asilos, prisões, quartéis, escolas etc.) e na racionalização do espaço público (calçamento de vias, arborização de logradouros, remoção regular do lixo, afastamento de atividades nocivas e incômodas dos centros das aglomerações urbanas, criação de cemitérios apartados das igrejas etc.). Como dissemos acima, as consequências de tudo isso só começariam a se fazer sentir no Brasil a partir do Segundo Reinado60.

    Na década de 1850, a situação econômica da Província intensificava-se com os primeiros sinais de prosperidade demonstrados pela lavoura de café no Oeste paulista. A construção da ferrovia de Santos a Jundiaí (1860-1867) não foi apenas o resultado desse paulatino processo de enriquecimento, mas sobretudo a consequência da antevisão, por parte de capitalistas ingleses, dos grandes lucros que poderiam ser auferidos a partir da posterior expansão da produção cafeeira paulista, propiciada pelo novo tipo de meio de transporte: rápido, seguro e eficiente.


    A adoção da alvenaria autoportante de tijolos

    Definitivamente, o primeiro grande passo para a modernização das estruturas hospitalares na cidade de São Paulo foi a adoção de um novo método de construir. Não há dúvida de que a alvenaria autoportante de tijolos foi crucial para a melhoria geral do padrão das edificações da cidade. Em 1850, uma enchente ocorrida no início de janeiro deixara os paulistanos deveras assustados, pois em contato com a água da inundação várias casas de taipa de pilão haviam simplesmente desabado, tal como aconteceu recentemente com o desastre que se abateu sobre o centro histórico de São Luis de Paraitinga (2010). Um engenheiro polonês de nome Cristino Wyzewski enviou então um oficio à Câmara paulistana, exortando-a a dissuadir a população da cidade de continuar construindo com terra socada. O processo de substituição do sistema construtivo nos edifícios comuns da cidade desde então desencadeado deu-se de modo dificilmente perceptível, mas no final dos anos 1850 já se viam algumas importantes construções oficiais executadas de acordo com a nova técnica de construção: a segunda ponte do Acu (1852); a segunda ala da Penitenciária, iniciada em 1854; a caixa d’água municipal da Rua da Cruz Preta (1857); o teatro de São José (1858-1864) e a ala mais recente do Seminário da Luz (1858-1860). Na década de 1860, destacaram-se ainda as obras de reconstrução da ala situada na parte posterior do Palácio do Governo, a ala presidencial (1862-1864), o complexo ferroviário da San Paulo Railway, constituído de muros de arrimo, galpões e estações ferroviárias, executados entre 1860 e 1867, e o mercado municipal (1865-1867), erguido junto da várzea do Rio Tamanduateí. A partir de então podemos considerar a taipa de pilão definitivamente abandonada na Capital, sobrevivendo apenas no erguimento de ocasionais muros divisores de lotes ou na execução de eventuais muros de arrimo
    61.

    Em 1855, o médico Dr. Ernesto Benedito Ottoni, participante de uma comissão composta pelo Dr. Antônio Ribeiro de Almeida e Major Luís José Monteiro, num relatório apresentado ao governo provincial, fazia recomendações para a futura sede do Hospital de Morféticos a ser construída em São Paulo: deveria ser uma casa assobradada (isto é, provida de porão), com alicerces de pedra até o nível do pavimento e paredes de tijolos (com exposição este-oeste, para benefício da insolação do edifício). As janelas seriam rasgadas até acima para evitar que os miasmas se acumulassem na parte superior interna da edificação. Enquanto no nível do pavimento, haveria respiradouros que pudessem ser fechados ou abertos, à vontade, a fim de renovar o ar da parte inferior da construção62.

    A recomendação de que o edifício do hospício fosse construído de tijolos sobre alicerces de pedra era semelhante àquela que havia sido feita para todas edificações paulistanas pelo engenheiro Wyzewski, cinco anos antes. E isso vem corroborar que à época a alvenaria autoportante de tijolos, assentada sobre fundações de pedra, estava intimamente associada a ideias de solidez, impermeabilidade, conforto ambiental e salubridade; de modernidade, enfim63.


    Princípios higienistas influem na concepção arquitetônica de hospitais paulistanos

    Já havíamos reparado em nossa tese de doutorado que nos escassos equipamentos públicos erguidos durante a primeira metade dos Oitocentos não chegaram, seguramente, a se incorporar nenhum dos princípios básicos de salubridade desenvolvidos pela medicina higienista, então em seus primórdios no Brasil. O Hospital Militar, inaugurado no Acu em 1802, o Hospital da Misericórdia (tanto a casa de chácara adaptada em 1825, quanto a nova sede especialmente construída entre 1832 e 1840), o primeiro raio da Penitenciária em forma de panóptico, de realização tão arrastada quanto acidentada (erguido entre 1839 e 1851), e o matadouro municipal (1849-1853), de autoria do engenheiro alemão Carlos Abraão Bresser (1804-1856), formavam um conjunto de grosseiras edificações de taipa de pilão que décadas mais tarde estariam sendo condenadas por sua má construção e inadequação às funções a que se destinavam64.

    A única medida comum a esses edifícios na qual poderíamos reconhecer uma preocupação de natureza preventiva era a segregação de todos eles em relação ao núcleo urbano. Medida nem sempre eficaz, pois as construções situadas ao sul eram constantemente varridas por ventos úmidos provindos da Serra do Mar que sopravam sobre a cidade, para a qual eles acabavam trazendo os ares contaminados pelos temíveis miasmas, conforme as teorias médicas da época. O matadouro apresentava ainda o agravante de lançar seus dejetos no Ribeirão Anhangabaú, cujas águas impuras vinham depois banhar o sopé da colina onde se levantava a Capital65.

    É evidente que os princípios higiênicos resultantes das teorias médicas neo-hipocráticas ainda prevalecentes na segunda metade do século XIX contrastavam com os vigorantes em épocas anteriores. Antes, com a concepção de que as enfermidades eram produzidas pelos fenômenos atmosféricos ou cósmicos, tais como, maus ares, relâmpagos ou luz da lua e das estrelas, as pessoas tinham tendência a se recolher no interior das casas, mantendo-as hermeticamente fechadas, sobretudo à noite, com o fito de se subtraírem aos efeitos negativos do mundo exterior. Daí, supomos, o hábito luso-brasileiro tradicional de dormir em ambientes recônditos, nas alcovas, compartimentos desprovidos de aberturas externas66. Agora, com a teoria segundo a qual os pretensos “vapores”, emanados da terra, da água, da matéria putrescente ou dos corpos doentes, eram tidos como os principais agentes patogênicos, desenvolveu-se a concepção de que o combate às doenças deveria ser feito por meio da ventilação abundante e da continuada osculação solar. Ar e luz tornaram-se, portanto, as novas e imprescindíveis necessidades. Antes, até as árvores podiam constituir ameaças com suas sombras vistas às vezes como perniciosas, provocadoras de moléstias, sendo pouco desejável a presença delas em locais próximos dos espaços habitados. Agora, ao contrário, a presença das árvores era fundamental, porque proporcionavam oxigenação dos ambientes externos, em torno das construções. Também as flores eram bem-vindas, pois seus aromas agradáveis neutralizavam os agentes patógenos, constituídos de fétidos eflúvios.

    Essa mudança radical de atitude com relação à profilaxia é que levou à adoção de um novo tipo de hospital na França em fins do século XVIII, no qual uma ventilação contínua em todo o edifício deveria ser alcançada para evitar que o ar parado, saturado de miasmas, tivesse a chance de infectar os doentes em tratamento e as demais pessoas presentes no local. No relatório do Dr. Caetano de Campos sobre o velho hospital da Misericórdia de 1875, transparecem esses novos conceitos, quando o médico afirma que após a reforma e limpeza empreendida na velha construção havia sido acrescentado como novo benefício – além da rouparia, do depósito de cadáveres, de uma sala de operações e dos encanamentos de água e de gás – o ajardinamento dos terrenos adjacentes, o que não só veio aformosear o edifício, como transformar suas condições higiênicas67. Em outro ponto, reivindicava ele melhor ventilação da construção, com a abertura de óculos nos tetos das enfermarias e nas portas das salas. “Peço ar para meus doentes. É tão pouco...”68, rogava, porque sabia que nos novos hospitais de partido higienista a ventilação contínua era a chave do segredo para a queda vertiginosa da mortalidade observada entre os enfermos.


    Hospital da Sociedade Portuguesa de Beneficência (1873-1876)

    Embora de forma discreta, é possível que as novas concepções higienistas já comparecessem no Hospital da Sociedade Portuguesa de Beneficência (1873-1876), cujas instalações foram tão apreciadas pela imprensa ao tempo de sua inauguração. O noticiário da época, porém, não esmiuçou os aspectos técnicos para nós tão relevantes, limitando-se a afiançar que era excelente a situação sanitária do hospital. Tal fato é digno de lástima porquanto seria valioso poder conhecer em detalhes as condições de ventilação, iluminação e insolação, o esquema de circulação, o sistema de abastecimento de água e o de remoção de dejetos, existentes no edifício. Mas a constatação de que nada disso mereceu a atenção da imprensa na ocasião, parece indicar claramente que esses aspectos ainda não eram tidos como de máxima importância para o bom funcionamento de um estabelecimento hospitalar.

    Na época, um jornalista do Correio Paulistano assim o descreveu: Sem dúvida nenhuma, o edifício paulistano de estilo neoclássico mais bem realizado, ao menos no que se refere a sua aparência externa, foi o Hospital da Sociedade Portuguesa de Beneficência, cujo projeto, datado de 1866, era de autoria do português Manuel Gonçalves da Silva Cantarino. Embora o estabelecimento só tenha sido levantado anos mais tarde (1873-1876), no início da fase de transição para o Ecletismo, do ponto de vista estilístico pertencia ainda à linguagem arquitetônica neoclássica, admitida em São Paulo no decorrer dos anos de 1850 e 1860. Felizmente, sua fisionomia original sobrevive em fotografia (fig.12 e 13).

    Sociedade Portuguesa de Beneficência
    Fig.12 - Vista externa do edifício da Sociedade Portuguesa de Beneficência,
    na Rua Brigadeiro Tobias. Projeto do arquiteto português
    Manuel Gonçalves da Silva Cantarino, datado de 1866-1873.


    Acervo Museu da Cidade de São Paulo, DPH, SMC,
    Prefeitura da Cidade de São Paulo.

    Sociedade Portuguesa de Beneficência, reconstituição
    Fig.13 - Reconstituição aproximada da fachada do
    Hospital da Sociedade Portuguesa de Beneficência, 1873-1876.
    Desenho executado com técnica digital.

    Autoria arq. Eudes Campos, 2010.


    A vistosa frontaria assobradada, de 26 m de extensão, estava voltada para a Rua Alegre (atual Brigadeiro Tobias). Composta de nove vãos em arco pleno no primeiro andar, dispunha de antecorpo central, compreendendo três aberturas e encimado de frontão. A parte inferior, pouco visível na foto por estar encoberta pelas plantas do jardim, foi tratada como embasamento ou porão, tendo paramento de cantaria fingida nas superfícies externas das paredes, perfuradas por grandes respiradouros de formato semi-circular; no piso superior, a que se tinha acesso diretamente do jardim por meio de um lanço externo de escada, os panos de parede ritmavam-se pela seqüência alternada de janelas rasgadas e pilastras jônicas. Acima do entablamento, desenvolvia-se uma platibanda azulejada, intercalada de pedestais nas prumadas das pilastras, sobre os quais repousavam belas crateras de faiança. E no tímpano do coroamento central, num medalhão de estuque, em relevo, via-se representada a tradicional alegoria da Caridade – Nossa Senhora da Misericórdia estendendo o manto sobre os necessitados. Recuado dos limites do lote, o hospital abria espaço para um estreito jardim fronteiro, que estava separado da via pública (antiga Rua Alegre, atual Brigadeiro Tobias) por um gradeamento metálico engastado em pilares vistosamente enfeitados com graúdas peças de remate70.

    Baseando-nos nas informações contidas no trecho de jornal acima reproduzido e em plantas de reforma apresentadas à Prefeitura em agosto de 1915, hoje depositadas no Arquivo Histórico de São Paulo71, ousamos reconstituir em linhas gerais a primitiva disposição interna do hospital (fig.14).

    Sociedade Portuguesa de Beneficência, reconstituição
    Fig.14 - Reconstituição aproximada da planta baixa original do
    hospital da Sociedade Beneficência Portuguesa, construído entre 1873 e 1876.
    Desenho executado com técnica digital a partir
    de planta existente no AHSP datada de 1915.

    Autoria arq. Eudes Campos, 2010.


    Galgando um estreito lance de escada que partia do jardim fronteiro e terminava num pequeno patamar, ascendia-se ao pavimento principal, onde a porta de ingresso dava passagem a um amplo vestíbulo. Uma vez no interior do estabelecimento, o visitante ou podia dirigir-se a uma das duas salas posicionadas à direita e à esquerda do saguão (sala de visitas e sala da administração, talvez), ou então seguir em frente rumo à capela, cujas janelas deitavam para uma área central descoberta. (Tanto a forma da escada externa, como a posição da capela resultaram de uma modificação introduzida no projeto original pela mesa diretora do hospital em 1873, antes do início das obras, havendo sido feitas essas alterações com consentimento e aprovação do autor, o arquiteto Cantarino, conforme atestam as atas das seções de diretoria72). De cada lado da capela e projetando-se para a parte posterior do edifício, desenvolviam-se duas alas com seis grandes quartos cada uma. Nesses quartos eram acomodados os doentes em pequenos grupos, certamente separados segundo a moléstia que os acometia e o sexo a que pertenciam. No fundo, disposto no sentido transversal, unindo as duas alas longitudinais, estava agenciado amplo refeitório, mais tarde transformado em enfermaria. Algumas das aberturas do refeitório comunicavam-se diretamente com uma varanda situada na parte traseira da edificação. Protegida por uma cobertura apoiada em colunas de ferro, essa varanda, por meio de uma escada, estabelecia a ligação externa do primeiro andar com o rés-do-chão. Nos prolongamentos das alas que ultrapassavam o refeitório e delimitavam lateralmente um pátio existente atrás, distribuíam-se vários compartimentos de serviço, essenciais ao funcionamento do hospital. Supomos que por essa época já estivesse o porão ocupado por dependências de caráter secundário.

    O partido adotado, com alas formando um grande retângulo em cujo interior se abria uma área de iluminação e ventilação, revelava extrema simplicidade na divisão dos cômodos – para não dizer certo simplismo. Com o tempo, foram crescendo as exigências do programa de necessidades a ser atendido pela instituição, tornando-se indispensáveis o aumento, a repartição ou a unificação das peças, a adição de anexos e a abertura de novas janelas. Na mais importante dessas intervenções, datada do final do século XIX, promovida pelo benemérito de origem açoriana José Coelho Pamplona (1843-1906), a fachada foi ampliada para 42 m de largura, sendo revestida com uma pesada decoração externa de gosto eclético, na qual se incluíam nichos com relevantes figuras da história lusitana, ocasião em que foi, sem dúvida, acrescido um anexo ao flanco direito do hospital, reservado à sala de operações. O térreo, com tratamento arquitetônico de porão, já estava todo ocupado nessa época, com cozinha, despensa, sala de refeitório para convalescentes, quartos de banho de chuva, vestiários, sala hidroterápica, e toilletes. Em 1915, procurava-se sobretudo aproveitar melhor a área do pavimento inferior, tendo sido necessário rebaixar o piso para aumentar o pé-direito dessa parte da construção.

    O projeto original do edifício hospitalar (1866) era, como visto, de autoria do arquiteto Cantarino. Aparentemente este profissional, proveniente do Vale do Parnaíba, ficou pouco tempo na Capital (se é que aqui esteve de fato), pois já no ano seguinte surgia em Campinas reconstruindo ou reformando o Teatro São Carlos, numa bela versão luso-brasileira do estilo Império, e riscando o frontispício da matriz local, que, segundo informações contemporâneas, era de estilo “romano”, o que neste caso deve ser interpretado como de estilo neoclássico, e não neo-renascentista como seria entendido depois73. Em 9 de fevereiro de 1867, o administrador de obras da matriz nova daquela cidade, Antônio Carlos Sampaio Peixoto, comunicava que havia ajustado à sua custa
      para riscar e dirigir todos os trabalhos da fachada da mesma [matriz] o mui habil architecto Manoel Goncalves [sic] da Silva Cantarino, bem conhecido nas Provincias do rio [sic] de Janeiro e S. Paulo [...] 74

    Em nossa opinião deve-se ver em Cantarino um daqueles talentosos mestres de obras portugueses que se especializaram em projetos arquitetônicos, atribuindo por isso a si mesmos o título de arquiteto75. Provavelmente trabalhara na Corte antes de, hipoteticamente, se transferir para o Vale do Paraíba. Depois teria seguido a rota do ouro verde até Campinas, então florescente com a economia do café e do algodão.

    Como é lógico, dificilmente um pretenso mestre de obras português estaria à altura de um encargo de tamanha responsabilidade, quanto era o projeto de um grande hospital. A esse respeito manifestou-se o engenheiro-arquiteto alemão Luís Schreiner (1838-1892) em 1880, ao constatar a insalubridade da maioria dos hospitais brasileiros de sua época. Indagando por que não eram corretamente adotadas as prescrições sanitárias tão pertinentes e já tão antigas – pois remontavam a um plano especial criado na França em fins do século XVIII que permanecia plenamente válido – ele próprio respondia da seguinte maneira: Não obstante estar eivado de evidentes interesses corporativos sempre em choque com os profissionais não diplomados, esse trecho não se afasta da verdade ao afirmar que eram os engenheiros os profissionais mais aptos, por sua formação científica, a enfrentar a crescente complexidade que o ato de projetar estruturas hospitalares vinha apresentando ultimamente, embora seja forçoso admitir que ser engenheiro não era condição suficiente, à vista do que dizia o engenheiro e higienista francês Casimir Tollet (1828-1899) a propósito da construção de hospitais:

    Hospitais vistos como fatores de desenvolvimento urbano

    Ainda relativamente ao hospital de que vimos tratando, temos notícia de um caso que não deixa de ser curioso. Na época em que se pretendia iniciar as obras de construção, a localização do edifício chegou a ser objeto de controvérsia, tendo o médico da Câmara Francisco Honorato de Moura dado um parecer contrário à realização do projeto num terreno para isso adquirido pela Sociedade Portuguesa de Beneficência, terreno esse situado na Rua Alegre, esquina com a posteriormente chamada Rua da Beneficência
    78.

    Em fins de 1872, a sociedade se mostrava interessada em dois lotes situados na Rua Alegre, pois resolvera não levar adiante a ideia de construir o hospital no imóvel que possuía na Rua São João. Na primeira tentativa de compra, a instituição filantrópica decidiu-se por um terreno pertencente à antiga chácara do falecido Brigadeiro Tobias (1795-1857), então nas mãos de seu filho Antônio Francisco de Aguiar e Castro (18??-1905), mas essa transação não prosperou. A seguir, a instituição recebeu uma proposta muito favorável do Comendador Antônio de Aguiar Barros (1823-1889), futuro Marquês de Itu, dono do lote em que seria finalmente erguido o hospital. Não há dúvida de que o vendedor, ao fazer uma proposta irrecusável, tinha por objetivo atrair a construção do hospital para promover a valorização de suas propriedades79.

    Ao ser consultado a respeito da conveniência de se levantar o hospital da Beneficência na Rua Alegre, o médico de partido emitiu um parecer decididamente desfavorável. Na visão dele, que era a prevalecente na época, o novo local escolhido pela Beneficência estaria em breve totalmente ocupado por edificações residenciais e isso, além de configurar uma ameaça à salubridade do hospital que pretendiam construir, ensejaria que os futuros vizinhos se dessem mais tarde por incomodados com a presença do nosocômio e censurassem a imprevidência da concessão. Para melhor fundamentar seu parecer, recorreu o funcionário da Câmara à opinião do ilustre médico Ambroise Auguste Tardieu (1818-1879), de quem citava trecho do Dictionnaire d’hygiène publique et de salubrité (1852-1854). Primeiramente, tal como estava sendo proposto, e ao contrário do que prescrevia o sábio francês, considerava desnecessário que o hospital se situasse em lugar alto e ventilado, pois a Capital por sua situação elevada sobre o nível do mar e por sua climatologia especial permitia que se dispensasse esse cuidado. Concordava, em consequência, com o fato de que preferissem os membros da sociedade beneficente erguer o estabelecimento em local cortado por água corrente, ou acessível à derivação do encanamento existente (o que nos faz supor fosse a instituição suprida pelo canal que vinha do Tanque Reiuno, situado atrás da igreja da Consolação, e que levava água ao Jardim Público, passando pelas imediações); insistia muito porém na condição expressa por Tardieu – e que seria desconsiderada pela futura construção –, relativa ao posicionamento do hospital em sítio pouco povoado, onde houvesse ar puro e espaço, sem a agitação e o ruído da cidade. Apesar da coerência dos conceitos emitidos, conforme os critérios baseados em teorias neo-hipocráticas então vigentes, a Câmara, a quem era dirigido o parecer, pressionada sem dúvida pelos importantes personagens envolvidos na transação comercial, manteve-se insensível à argumentação científica e, em votação, acabou por deferir por unanimidade o requerimento apresentado pela instituição interessada80.

    Esse episódio nos leva a cogitar que, já naquele tempo, maiores que o temor da contaminação dos ares inspirado pela presença inoportuna de um hospital construído muito próximo da área urbana eram as vantagens econômicas que essa presença trazia, sob a forma de valorização das propriedades imobiliárias estabelecidas em seu derredor. Afinal, um estabelecimento deste tipo acabava, cedo ou tarde, atuando como verdadeiro fator de desenvolvimento urbano da região em que se encontrava localizado. Tanto isso era verdade que, dois anos mais tarde, o Coronel Rafael Tobias de Barros (1830-1898), futuro segundo Barão de Piracicaba, primo de Antônio de Aguiar de Barros, erguia, sem nenhum constrangimento, o seu vistoso palacete na vizinhança imediata do hospital, numa clara indicação de ao se tratar de questões fundiárias as recomendações médicas começavam a perder a importância perante puras considerações de natureza econômica81.

    Aliás, não foi essa a única vez que especuladores atraíram um hospital para terras que pretendiam valorizar e parcelar. Em 1878, o rico português Antônio José Leite Braga, proprietário da antiga Chácara do Bexiga, então em processo de loteamento, também ofereceu terreno nessa localidade para que a Santa Casa de Misericórdia construísse o seu novo hospital. E pouco depois (1880), membros da importante família Pais de Barros, cujos membros estavam aos poucos se transferindo de Itu para a Capital, com explícitos interesses fundiários nas terras no Arouche – entre eles o mesmo Antônio de Aguiar Barros, futuro Marquês de Itu, que estivera envolvido anos antes no caso da Beneficência –, forçavam a transferência do futuro hospital da Misericórdia, que ia ser erguido na Bela Vista, para o lado sudoeste da cidade, na certeza de que a presença daquela instituição de saúde estimularia a ocupação urbana das áreas circunvizinhas; o que de fato, mais uma vez, acabou ocorrendo82. O processo de urbanização em torno do hospital foi tão rápido que, em 1900, Alfredo Moreira Pinto fazia restrições à localização da instituição, em razão de estar ela inserida em região já muito povoada83.


    A cidade de São Paulo atinge novo patamar de desenvolvimento

    Sem sombra de dúvida, foi a partir dos últimos anos da década de 1870 que teve início uma nova etapa na construção de edifícios públicos em São Paulo, em especial de edifícios hospitalares. O relativo descaso com que era enfrentada a questão da saúde pública durante o Império, conseqüência entre outros fatores do liberalismo predominante na Constituição de 1824, foi aos poucos sendo substituída por uma atitude mais responsável por parte das autoridades governamentais, que, durante a República, não hesitariam em lançar mão de um enérgico autoritarismo para conseguir alcançar seus objetivos salubristas. E a razão disso era que o interesse pela intensificação da corrente migratória para servir de mão de obra nas florescentes lavouras de café do Oeste paulista poderia sofrer sérios riscos caso não fossem tomadas urgentes providências de natureza sanitária. A melhoria das condições da assistência hospitalar, então dedicada ao atendimento das faixas mais pobres da população, não deixava agora de ser assim outra faceta da política imigrantista. Pois, se, por um lado, denunciava a inquietação da camada senhorial com sua própria segurança higiênica, por outro revelava o seu mais vivo interesse pela reprodução da nova força de trabalho que então se constituía e que, dentro em breve, deveria substituir completamente a agora indesejável mão de obra escrava.

    Não era à toa que nos últimos tempos membros pertencentes à mais alta camada da sociedade paulistana passaram a participar ativamente da administração de entidades assistenciais. O caso da Santa Casa de Misericórdia é, sob esse aspecto, paradigmático. No século XVIII, os governadores portugueses da Capitania de São Paulo foram obrigados a ocupar a provedoria da irmandade como forma de favorecer o desenvolvimento da instituição. No século XIX, os primeiros presidentes da Província mantiveram essa tradição, para prestigiar uma confraria que de outra forma corria o risco de entrar em decadência. Mas a partir dos meados dos Oitocentos, elementos da elite social da cidade passaram a fazer questão de participar da composição da Mesa da Santa Casa, rivalizando-se entre si em obras de desinteressada benemerência. Antônio da Silva Prado (1778-1875), Barão de Iguape, por exemplo, banqueiro e empresário muito rico, ocupou o cargo de provedor de 1847 a 1875. Sua filha ilustre, D. Veridiana (1825-1910), destacou-se nesse período por ter custeado a reforma do hospital da Glória, entre 1872 e 1875. E cinco anos mais tarde, 40 membros ligados à família rival dos Prado, os Pais de Barros, conseguiram entrar na Santa Casa como irmãos. Alguns deles fariam grandes doações durante a construção do hospital no Arouche, alcançando com esse gesto cobiçados títulos nobiliárquicos do Império, enquanto três membros dessa prestigiosa família ocupariam a provedoria da Misericórdia entre 1886 e 1900, sem contar que mais um membro seria alçado ao cargo de provedor no ano compromissal de 1902-1903 e entre os anos de 1905 e 191784.

    A partir dos anos 1870, a cidade de São Paulo atingia novo estágio de desenvolvimento. É comum na historiografia ser assinalado como novo marco da vida urbana da Capital o governo do Presidente João Teodoro (1872-1875). De fato, desde o tempo do Presidente Fernandes Torres (1857-1860), não se executavam tantas obras públicas em São Paulo. No entanto, as obras de iniciativa municipal custeadas pelo governo da Província no tempo de João Teodoro têm merecido um destaque um tanto exagerado e acrítico por parte dos historiadores. Em estudo recente, tentamos demonstrar que a maioria das obras então encetadas mantinham ainda um ranço de improvisação e incompetência técnica, incompatível com a mentalidade burguesa que aos poucos se constituía. Embora o governo provincial tenha custeado a abertura de ruas, a pavimentação de vias públicas com paralelepípedos, a construção de pontes, a arborização de logradouros, etc., quase tudo foi mal executado, sem planejamento e com muito abuso por parte dos empreiteiros de obras públicas. Situação que só melhoraria na administração de seu sucessor, Dr. Sebastião José Pereira (1875-1878)85.

    Depois de uma fase de crescimento tumultuado experimentada por São Paulo entre os anos de 1880 e 1900, em razão das sucessivas ondas migratórias que acabavam trazendo trabalhadores urbanos que se fixavam na Capital – época em que o industrialismo começou a deixar impressas as primeiras marcas indeléveis na cidade –, grandes intervenções urbanas remodeladoras seriam encetadas a partir das décadas seguintes, período em que foi concebido e parcialmente aplicado o famoso Plano Bouvard (1911). As obras públicas então realizadas, pertencentes ao período das administrações municipais dos primeiros prefeitos paulistanos, Antônio Prado (1898-1911), Raimundo Duprat (1911-1914) e Washington Luís (1914-1919), prolongar-se-iam em alguns casos até 1930. Atuantes no princípio do século XX, esses administradores não se distanciaram do espírito do higienismo, ao promoverem alargamentos e retificações viárias, demolições de cortiços e arborização de logradouros. Recorrendo a métodos coercitivos e autoritários, tinham por objetivo não apenas sanear a área central da cidade, mas aprimorá-la do ponto de vista viário e estético, propiciando a decorrente valorização social e fundiária da região atingida pelos trabalhos de reurbanização.


    Hospitais paulistanos de partido higienista

    Hospital dos Variolosos (1878-1880)

    Uma das primeiras iniciativas da nova fase da cidade de São Paulo, mais tarde representada no âmbito da saúde pública pela criação da Inspetoria de Higiene Provincial (1886) e do serviço de higiene (1888), foi a construção do Hospital de Variolosos (1879-1880), de iniciativa municipal
    86. Previsto desde 187587, foi erguido no Araçá (atual Avenida Dr. Arnaldo), numa bifurcação do caminho dos Pinheiros (Avenida Rebouças), pouco adiante dos limites do rossio paulistano, tal como prescreviam as normas sanitárias pré-assépticas estabelecidas para hospitais de doenças infecciosas88. O seu plano foi feito desinteressadamente por um engenheiro de renome, Inácio Wallace da Gama Cochrane (1836-1912), médico nascido em Valença (RJ), formado na Corte, e desde alguns anos estabelecido na cidade de São Paulo89. Conforme constava do relatório do Conselheiro Antônio Prado (1840-1929), presidente da Câmara Municipal, lido perante os novos vereadores em 1881, o hospital fora “construido com todas as condições exigidas e collocado em excellente local”90, o que significava dizer, em local retirado, alto e bastante ventilado, com ventos predominantes que levavam o ar infectado pelos miasmas gerados no hospital para longe da cidade.

    Deste hospital conhecemos a representação que dele fez o litógrafo francês Jules Martin (1832-1906) na época da construção do estabelecimento (fig.15) e a zincogravura de autoria de Theodor Wendt, publicada na Revista Medica de S. Paulo nos anos iniciais da República91 (fig.16). O programa original do hospital pode ser reconstituído hoje a partir de informações veiculadas na impressa especializada por ocasião da conversão do pavilhão, conhecido desde então como o de n. 3, ao tratamento de doentes de escarlatina. O texto então publicado dizia:
      Pavilhão n. 3 – Escarlatina
      Compõe-se de um corpo central e duas alas lateraes. Nestas estão as enfermarias (duas de cada lado) para oito leitos cada uma. No corpo central ha um salão e dez quartos destinados a doentes de classe. Como no pavilhão n. 2 ha annexas a este
      [sic, por oeste] as mesmas dependencias destinadas á copa, sala de distribuição de dietas, refeitorio e dormitorios dos empregados do pavilhão92.
    ospital da Câmara, ou de Variolosos, 1880
    Fig.15 - Hospital da Câmara, ou de Variolosos.
    Desenho de Jules Martin, por volta de 1880.


    Acervo Museu da Cidade de São Paulo, DPH, SMC,
    da Prefeitura da Cidade de São Paulo.

    Sociedade Portuguesa de Beneficência, reconstituição
    Fig.16 - Ilustração publicada na Revista Médica de S. Paulo,
    mostrando o estado do antigo Hospital de Isolamento, então Pavilhão n. 3.
    Zincogravura de autoria de Th.Wendt, c. 1900.


    Acervo Biblioteca da Faculdade de Medicina da USP.

    Tratava-se portanto de um edifício comprido, concebido no sistema linear, com duas enfermarias em cada ala lateral, uma para cada sexo, tendo um corpo central volumoso, ocupado por dez quartos para doentes pagantes e um amplo salão provido de um grande ventilador na cobertura. A esta construção se acrescia um apêndice de serviços na parte posterior, acessível a partir do corpo principal por meio de um passadiço. Embora protegido por telhado e paredes, esse passadiço estaria, sem dúvida, provido de algum dispositivo que permitisse a ventilação contínua de seu interior, pois, na ótica higienista, só a ininterrupta ventilação dessa passagem iria impedir que a contaminação se alastrasse para a parte de serviços, onde repousavam os funcionários do hospital. Da mesma forma, a função do grande ventilador existente no alto da cobertura era assegurar a permanente renovação do ar no interior do prédio principal, por meio de constante tiragem.

    Ainda em 1894 eram consideradas pelo Secretário dos Negócios do Interior Cesário Mota Júnior (1847-1897) plenamente satisfatórias as condições desse hospital: Anos mais tarde, porém, esse prédio passaria por uma grande reforma, objetivando sua melhor higienização. O telhado foi alterado, havendo sido retirado o ventilador original e substituído por uma área aberta, cujo propósito seria elevar ainda mais o índice de renovação de ar na parte interna do hospital (fig.17). Quanto aos respiradouros do porão, foram alargados, sendo substituídos por amplas aberturas em arco, que possibilitassem o acesso para a varredura regular do local, de modo a impedir, segundo a concepção higienista, o acúmulo de material infectado na parte inferior da edificação. Por fim, o edifício foi derrubado em 195794, depois de ter perdido a ala esquerda com a construção anos antes do Instituto Adolfo Lutz, localizado nas imediações.

    Antigo Hospital de Isolamento, 1930
    Fig.17 - Pormenor do Mapa SARA Brasil de 1930 (Folha 50/13, escala 1:1000), mostrando a projeção horizontal do antigo Hospital de Isolamento, depois Pavilhão n. 3.
    O mapa mostra a cobertura alterada do pavilhão,
    com uma área de aeração e iluminação no lugar do antigo lanternim.

    Acervo AHSP.


    Hospital da Santa Casa (1881-1884), no Arouche - hoje Vila Buarque

    Mas sem dúvida a construção hospitalar mais significativa da cidade, iniciada ainda na época monárquica, foi a nova sede do Hospital da Santa Casa de Misericórdia, que teve seu projeto selecionado num dos primeiros concursos exclusivos para engenheiros-arquitetos realizados na Capital (1879) (fig.18 e 19). Luís Pucci (1853- 19??), engenheiro-arquiteto de naturalidade italiana cuja presença na Província está documentada desde 1876, segundo consta, autor do plano classificado em primeiro lugar, adotou para esse estabelecimento o sistema tido na ocasião como o melhor, diante dos resultados positivos que vinha apresentando no combate à mortalidade hospitalar: o sistema de pavilhões
    95.

    Santa Casa de Misericórdia, 1879
    Fig.18 - Desenho da proposta original para a fachada do hospital da Santa Casa de Misericórdia a ser erguido no Arouche, atual bairro de Vila Buarque.
    Autoria do engenheiro-arquiteto italiano Luís Pucci (1853-19?), 1879.


    Fonte: CARNEIRO, Nelson. O poder da Misericórdia. São Paulo: s.n., 1986. 2v. V1


    Santa Casa de Misericórdia, 1930
    Fig.19 - Pormenor do mapa SARA de 1930 (Folhas 50/5 e 50/10, escala 1:1000), mostrando a projeção horizontal do Hospital da Santa Casa de Misericórdia.

    Acervo AHSP.

    A origem desse sistema remontava ao século anterior, tendo sido recomendado por uma comissão nomeada pela Academia de Ciências de Paris nos últimos anos do Antigo Regime (1786). Só foi internacionalmente reconhecido após o sucesso alcançado pelo hospital Lariboisière, antigo Louis-Philippe, de Paris, projetado pelo arquiteto Martin-Pierre Gauthier (1790-1855) em 1839 e construído entre 1846 e 185496 (fig.20). Florence Nightingale (1820-1910), ardente defensora da teoria miasmática, conhecia e recomendava esse sistema, considerando-o o que de mais aperfeiçoado havia para estruturas hospitalares de grande porte (Notes on hospitals, 1859)97.

    Hospital Lariboisière, Paris
    Fig.20 - Planta do Hospital Lariboisière, originalmente chamado Louis-Philippe,
    em Paris. Projeto do arquiteto Martin-Pierre Gauthier (1790-1855),
    datado de 1839 e construído entre 1846 e 1854.
    Protótipo oitocentista do partido de pavilhões.


    Fonte: MIGNOT, Claude. L’architecture au XIXe siècle.
    Fribourg: Office du Livre, 1983.

    No sistema pavilhonar, as enfermarias alojavam-se, em geral, em construções independentes de um único pavimento (no Lariboisière, porém, as enfermarias têm três pisos). Eram postas em comunicação por meio de longas galerias ou corredores e esses elementos de circulação formavam os lados maiores de um grande pátio central de forma quadrangular. Na frente desse pátio concentrava-se a administração; no fundo, erguia-se a capela e demais dependências. Os pavilhões partiam em ângulo reto dos dois corredores, para o lado de fora. Posicionados lado a lado, eram separados por amplos jardins, que serviam não apenas para passeio dos convalescentes, mas sobretudo para promover a purificação da atmosfera nos arredores do estabelecimento hospitalar, por meio da permanente circulação de ar.

    A proposta de Pucci não introduzia modificações nesse partido criado sob o influxo das teorias neo-hipocráticas, cuja grande vantagem, de acordo com os critérios profiláticos da época, era que as enfermarias recebiam abundante iluminação e insolação (no caso paulistano as janelas voltavam-se para leste e para oeste) e que a intensa circulação não permitia houvesse recantos com ar estagnado. E era isso que, conforme as pesquisas demonstravam, fazia cair vertiginosamente a taxa de mortalidade entre os doentes.

    Pucci, no memorial que fez acompanhar o seu projeto, indicava ainda outros aspectos positivos: A comissão encarregada da organização do concurso para seleção do projeto do novo hospital, por meio de editais publicados em fevereiro de 1879 no jornal A Provincia de São Paulo, definiu o programa de necessidades da futura sede da instituição. Aparentemente, pela primeira vez eram arroladas de modo prévio as acomodações de um hospital em São Paulo, não deixando ao sabor do acaso ou da concepção do projetista o estabelecimento das bases de funcionamento de um estabelecimento hospitalar. A comissão estava decidida a alcançar as condições ideais recomendadas pela higiene e o edifício hospitalar deveria ser planeado conforme “as regras e sistemas mais apropriados a esse gênero de construção”. Constavam do programa exigido: enfermarias para o número total de 200 a 250 leitos; sala de porteiro e recepção dos doentes; gabinete médico, sala de conferências médicas, sala de cirurgia e autópsia, cômodos para médico residente; farmácia; cômodos para dez irmãs de caridade (que já trabalhavam no antigo hospital da Glória desde 1872), enfermeiros e mais pessoal de serviço; rouparia; refeitório, sala dos convalescentes, despensa e cozinha; capela, sacristia, necrotério e cômodos para o capelão; salão da Provedoria, arquivo e dependências; biblioteca; Roda de Expostos, cômodos para criação e educação dos expostos e ingênuos; casa de banhos e duchas; lavanderia; sala de trabalhos de costura e engomagem99.

    Iniciado em 1881, o hospital da Santa Casa foi inaugurado inacabado em 1884. O jornal A Provincia de São Paulo, na edição de 2 de setembro desse ano descreveu o estágio em que se encontravam as obras: Como vimos acima, o repertório formal e decorativo usado por Pucci para revestir um tipo edificatório hospitalar de criação setecentista, gerado no seio da cultura arquitetônica do Classicismo francês, foi um estilo arquitetônico de tradição romântica do século XIX, o neogótico, em versão lombarda. Esse fato nos leva a chamar a atenção para a dissociação que então se impunha entre a sintaxe compositiva e o vocabulário formal dos edifícios, dissociação praticada na arquitetura européia desde, ao menos, os ensinamentos do teórico francês J. N. L. Durand (1760-1834), e tida como um dos traços mais marcantes da arquitetura historicista e eclética então em vigor.

    Pretendeu-se ver na escolha desse estilo uma decisão de caráter estritamente religioso, imposta pelo então provedor da Santa Casa, monsenhor João Jacinto Gonçalves de Andrade (1825-1898)101. Mas a verdade é que o revivalismo medievalizante – que se infiltrava tardiamente nos centros adiantados do País por essa época, mostrando-se muitas vezes em edifícios de natureza laica ou profana –, estava, como assinalado por Luciano Patetta102, intimamente ligado às convenções do ecletismo tipológico-estilístico e às concepções de modernidade e civilização, constituindo por esse motivo uma sedutora tentação em relação aos estilos classicistas então em voga. Ademais, no caso específico de construções hospitalares, sabe-se que havia, ainda, uma importante razão de cunho técnico-profilático a justificar o uso de abóbadas ogivais na arquitetura das enfermarias dos hospitais de partido higienista. Segundo a concepção miasmática, o ar infectado produzido no interior dos hospitais ascendia num movimento natural até o teto das enfermarias, e, de algum modo, deveria ser expelido para fora do edifício para não se manter em contato com os doentes e os demais frequentadores do local. No sistema desenvolvido a partir de 1872 pelo já citado engenheiro francês Casimir Tollet, objetivando garantir a sanidade dos ambientes hospitalares, a ascensão do ar viciado ficava facilitada pelo perfil ogival do teto das enfermarias. Uma vez concentrado no alto das abóbadas, o ar interno escapava tanto pelos óculos agenciados na parte superior das paredes extremas das enfermarias, quanto por chaminés distribuídas ao longo dos pontos mais altos do teto abobadado. Além disso, existiam nos interior das paredes, dutos, em espaçamentos regulares, que se encarregavam de retirar o ar junto ao piso desses ambientes (fig.21). A criação de um tal sistema de ventilação levou o historiador francês Claude Mignot a tecer o seguinte comentário: “significatif écho hygiéniste de l’interprétation rationaliste de l’architecture gothique”103.

    Uma enfermaria segundo o sistema Tollet
    Fig.21 - Corte de uma enfermaria segundo o sistema Tollet,
    criação de Casimir Tollet (1828-1899).


    Fonte: MIGNOT, Claude. L’architecture au XIXe siècle.
    Fribourg: Office du Livre, 1983.

    No caso paulistano, contudo, é possível que o engenheiro Pucci ignorasse o uso profilático das abóbadas ogivais, já que as enfermarias por ele projetadas para o hospital da Santa Casa não eram abobadadas, mas sim forradas com tetos planos estucados104.


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    Para citação adote:

    CAMPOS, Eudes. Hospitais paulistanos: do século XVI ao XIX.
    INFORMATIVO ARQUIVO HISTÓRICO DE SÃO PAULO, 6 (29): abr/jun.2011. <http://www.arquivohistorico.sp.gov.br>

     
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