PMSP/SMC/DPH
São Paulo, outubro de 2010
Ano 5 N.27 

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  • ESTUDOS & PESQUISAS
  • Pequena contribuição para o estudo da indumentária dos primeiros paulistanos


    Eudes Campos
    Seção de Estudos e Pesquisas




    | Introdução | Os trajes quinhentistas... | A evolução dos trajes... | Glossário | Fontes |


    A evolução dos trajes paulistas no século XVII


    Ernani Silva Bruno chegou a algumas constatações acerca do conteúdo dos inventários e testamentos paulistas dos séculos XVI ao XVIII. Seu pequeno livro Equipamentos da casa bandeirista segundo os antigos inventários e testamentos é bastante instrutivo para a história da indumentária paulista nos primeiros anos. No entanto, tal como Alcântara Machado, não se preocupou em contextualizar adequadamente a produção de roupas da época, nem determinar as influências atuantes em sua evolução.

    A partir de 1580, com a reunião das duas coroas ibéricas, Portugal começa a seguir muito de perto a moda de procedência hispânica. Depois de ter exercido grande influência sobre as mais importantes cortes européias ao longo do século XVI, durante o auge do prestígio político da Espanha, a indumentária desse país começa a ser abandonada pelas outras regiões da Europa a partir do início do século seguinte. Experimentando então forte declínio político e econômico, a Espanha isola-se culturalmente, aferrando-se a uma indumentária de caráter nacional, fruto do desenvolvimento autônomo das características apresentadas pelos trajes espanhóis usados na centúria anterior. Só a região de Flandres, algumas partes da Itália e Portugal se deixarão influenciar por essa moda seiscentista peculiar, em razão dos fortes vínculos políticos que continuaram mantendo com a corte espanhola.

    No século XVII, a indumentária da corte madrilenha tornou-se tão autocentrada que, em 1660, quando Luis XIV (1638-1715) e sua corte foram ao encontro da comitiva real espanhola que acompanhava a Infanta Maria Teresa (1638-1683), futura rainha de França, na Ilha dos Faisões, no Rio Bidassoa, deu-se um inevitável confronto cultural (fig.46). A luminosa corte do Rei Sol, cheia de cores alegres, rendas delicadas e fitas incontáveis, com longas perucas cacheadas a cascatear sob chapéus de muitas plumas, deparou-se com um grupo de homens sisudos, todos vestidos em tons sombrios, usando cabelos verdadeiros, escorridos, alguns ainda muito curtos, com grandes bigodes e entesadas golilhas, a flanquear uma princesa que sustentava uma armação de saias imensa, chamada guarda-infantes, descrita por uma escandalizada dama francesa, Madame de Motteville, como uma “máquina monstruosa” (BOUCHER, p. 278).

    Obviamente, o guarda-infantes nunca foi usado pelas paulistanas; era uma peça excessivamente cara e incômoda e que só as ricas e ociosas damas da nobreza espanhola ou portuguesa conseguiam adquirir e portar. Como vimos, as paulistanas eram adeptas do chouriço, mais barato e confortável. Mas a indumentária paulista, sem dúvida, durante muitos anos após a Restauração (1640) continuou a se orientar pela estética dos trajes cultos de tradição espanhola, tal como aconteceu durante muito tempo com o próprio Portugal independente, conforme fica provado pelo retrato da Princesa Catarina de Bragança (1638-1705), futura rainha da Inglaterra, datado de 1660/1661 (fig.47A, 47B, 47C). Em São Paulo, a ascendência espanhola em termos de moda, documentada pelos inventários paulistas, permanecerá até fins da segunda metade do século XVII, quando então a nomenclatura das vestimentas masculinas muda bruscamente, traindo a crescente autoridade da corte de Luís XIV, que já se insinuava na corte portuguesa desde o tempo do Príncipe Teodósio (1634-1653) e do Rei Afonso VI (1643-1683). Autoridade, aliás, que na própria corte espanhola começou ser experimentada a partir do início do reinado (1665) do Rei Carlos II (1661-1700).

    Essa influência, no entanto, a principio só se exerceu sobre o traje masculino (fig 48A, 48B, 48C, 48D e 48E). Nem a rainha de origem francesa Maria Francisca de Sabóia (1646-1683) (fig.49 A), nem sua sucessora, a alemã Maria Sofia Isabel (1666-1699), condessa palatina de Neuburgo (fig. 49C), segunda esposa do D. Pedro II de Portugal (1648-1706), conseguiram impor a moda feminina francesa na corte lusitana. Tal façanha só foi alcançada depois do retorno da rainha viúva Catarina da Inglaterra em 1693. Recusando-se a acatar um pedido do rei seu irmão de voltar a se vestir pelo figurino “nacional”, influenciado pelo traje espanhol (fig. 49B, 49D e 49E), conseguiu extrair dele a permissão para ela, a rainha e as demais damas da corte portuguesa adotarem a partir de então a moda francesa (LOURENÇO, p.65).

    Se a corte portuguesa só começou a se afastar do traje feminino espanhol nos derradeiros anos do século XVII, ficamos a cogitar qual teria sido o percurso das modas femininas paulistas, e mesmo brasileiras, a partir de então. Os inventários infelizmente não permitem que se faça nenhuma dedução a esse respeito. Nem foram encontrados documentos iconográficos que nos sugiram o que ocorreu com os trajes femininos paulistas nos últimos anos dos Seiscentos, embora saibamos que ele deve ter passado por mudanças, porque nos inventários consultados existem indícios de que isso realmente aconteceu.

    Pelos retratos de corte de origem espanhola somos capazes de perceber a evolução da silhueta das mulheres daquele pais pertencentes à realeza e à alta nobreza, entre 1660 e 1700, mas não conseguimos captar as mudanças introduzidas na indumentária usada pelas mulheres ibéricas das camadas médias da população, para saber o que elas vestiam nesse mesmo intervalo de tempo. Teríamos de fazer o mesmo exercício de imaginação para adivinhar o que a paulistana estaria vestindo ao sair sob o amplo manto negro de sarja ou baeta e seu pequeno chapéu de feltro preto, dois itens da moda hispânica popular dos quais a paulistana não se afastou até o começo do oitocentismo.

    Durante a primeira metade do século XVII, a versão paulista da moda espanhola era decerto adaptada às características da região. Pela leitura dos inventários e testamentos fica-se com a impressão de que a proverbial pobreza paulistana já não era tão real nos meados desse século. Existem inventários dessa época que enumeram uma quantidade relativamente apreciável de trajes. Nos arrolamentos não são incomuns certos indícios de luxo: uma considerável quantidade de jóias femininas, alguma prataria nas alfaias, e, nos trajes de ambos os sexos, referências a galões de ouro e prata, botões de prata e colchetes de prata sobredourados. Segundo a historiadora Ilana Blaj, foi a partir de meados do XVII que São Paulo aos poucos se integrou na economia de mercado (BLAJ, passim), e o incipiente enriquecimento da região teve seguramente seus reflexos na diversidade e na qualidade dos trajes usados pelos paulistas.

    As peças mencionadas nos documentos referentes a essa época tinham certamente correspondência com as vestimentas usadas na corte espanhola. A modelagem das peças devia até ser bastante próxima às dos trajes usados na Europa, só se diferenciando pela qualidade dos tecidos e dos acabamentos. Na Espanha da primeira metade do século XVII, os trajes masculinos e femininos das camadas superiores diferenciavam-se entre si muito mais pela forma que pelas cores ou pela qualidade dos tecidos, já que ambos os sexos abusavam das cores vivas combinadas com o negro, como de tecidos caros e refinados como seda, veludo e damasco, além de passamanarias e galões de ouro e prata, rendas e jóias. Em São Paulo, os enfeites eram, como é óbvio, muitíssimo mais modestos, sendo feitos principalmente com bandas de tecido e com galões ou passamanes em cores contratantes com as das fazendas das roupas. É possível que os trajes paulistas apresentassem um ou outro regionalismo, pequenas particularidades que hoje são impossíveis de apontar (fig.50). E, sobretudo, repetimos, os acessórios mais notáveis da moda espanhola de corte jamais teriam sido usados em São Paulo (nem sequer no resto do Brasil), tais como imensos mantéus, cabeções e largos punhos, finamente rendados, e o vistoso e descômodo guarda-infantes. Outra diferença notável, a que já fizemos referência, era que os trajes descritos nos inventários paulistas não constituíam vestimentas de todos os dias, mas peças usadas apenas em ocasiões especiais.



    As vestimentas paulistas através dos Inventários e Testamentos (1594-1710)

    No estudo realizado por Silva Bruno em 1977 e no arquivo por ele idealizado e coordenado para o Museu da Casa Brasileira – Arquivo Ernani Silva Bruno, aqui chamado AESB –, colhemos algumas informações que nos pareceram bastante interessantes acerca dos trajes paulistas.

    Antes de mais nada, achamos útil repetir aqui alguns trechos que abrem o capítulo Tecidos e roupas do livro O equipamento da casa bandeirista... Nesta parte, o autor informa que dos mais antigos inventários paulistas, datados do final do século XVI, foram retirados os nomes relativos a três tipos de peças de roupa: as roupetas [1578], as ceroulas [1578] e os calções [1590/1592]. A partir dos documentos datados de 1590/1592 surgiram, segundo o autor, os nomes de outras peças, tais como: cabeção, camisa, gibão, manto e saia. O cabeção, como vimos páginas atrás, era o outro nome do mantéu, exuberante adorno de pescoço independente, feito de tecido fino e engomado, que fazia as vezes dos colarinhos das camisas, nas roupas tanto de homens quanto de mulheres. O autor afirma igualmente que saia era uma peça do guarda-roupa feminino, o que é óbvio, mas não podemos concordar quando assegura que o manto que aparece nesses inventários era sempre uma peça do traje masculino, já que manto era também o nome dado ao grande abrigo feminino responsável pelo típico embuçamento das mulheres paulistas (caso em que às vezes vinha especificado como manto de mulher).

    De acordo com Bruno, em 1594 ocorrem as primeiras referências a diferentes peças de roupa confeccionadas com o mesmo material, formando conjuntos: calções e roupeta, no caso da indumentária masculina. Surgem também as primeiras menções às mangas avulsas, feitas quase sempre de algodão ou seda. Essas mangas, presas por colchetes ou atilhos, podiam ser trocadas, renovando a aparência das poucas peças disponíveis, como podiam também ser usadas como mangas perdidas, ou seja, como simples ornamentos. Dos anos seguintes provêm as primeiras citações feitas a vasquinha [1595] e ferragoulo [1596]. Concordamos com a definição dada pelo autor à vasquinha, mas temos de divergir acerca do ferragoulo, ou ferreruelo/herreruelo em espanhol, que na verdade era um tipo de capa e não um tipo de gibão (ver glossário).

    A seguir, o pesquisador encontrou nos papéis dos antigos inventários conjuntos formados por roupeta e mangas e por corpinho e gibão [1599]. Esses conjuntos atestam inovações em matéria de gosto: as peças de tecidos e cores diferentes que no século XVI eram geralmente usadas de forma coordenada, agora tendem à uniformização, sendo o vestido masculino completo formado de capa, ou ferragoulo, roupeta, gibão e calções, todas as peças da mesma cor e do mesmo tecido. O conjunto completo, porém, era raro (inventário de Maria da Silva, 1655; AESB), sendo geralmente usada uma peça de cor ou tecido diferente para evitar a monotonia. E entre as denominações de peças de vestuário que ainda não haviam sido citadas, encontram-se corpinho [1599], mantéu [1599], roupão [1599] e saio [1599]. Páginas atrás demos as nossas versões sobre quase todas essas peças e os interessados, consultando o estudo de Silva Bruno, poderão verificar as convergências ou não entre o que falamos e o que esse autor propôs como definição dessas vestimentas.

    Com o passar dos anos, outras peças do guarda-roupas seiscentista de ambos os sexos vêm à luz: anágua [1612], capote [1612], véstia [1625] e saltimbarca [1638]. Isso não significa que essas vestes só então teriam sido introduzidas em São Paulo, significa apenas que constituem as primeiras ocorrências desses nomes nos poucos inventários seiscentistas que chegaram até nossos dias.

    A certa altura, o historiador faz uma importante observação: nos documentos da segunda metade do século XVII deixam de ser mencionadas algumas peças do vestuário até então corriqueiras. Essas vestimentas relacionavam-se com a antiga indumentária de influência espanhola e isso, sem dúvida, parece indicar que as novas modas chegavam à remota vila de São Paulo.

    Desaparecem assim ferragoulo (última ocorrência 1641), saltimbarca (última ocorrência 1642), vasquinha (última ocorrência em 1644), corpinho (última ocorrência em 1651), mangas avulsas (última ocorrência 1651), roupão (última ocorrência 1651), mantéu (última ocorrência 1652) e punhos (última ocorrência 1650). De nossa parte, notamos que nos inventários datados dos anos entre 1649 e 1652 surgem vestidos femininos compostos de anáguas e roupetilhas (ver glossário), que a nosso ver indicariam trajes menos formais, embora por sua decoração ainda classificáveis como vestimentas de representação social. E que coletes ocorrem entre 1613 e 1665 e armadores entre 1638 e 1667, duas peças que, quando femininas, aparentemente substituíram o corpinho desaparecido a partir de 1651, como vimos (em espanhol atual armador é sinônimo de jubón). Nos trajes masculinos as casacas irão preponderar entre 1673 e 1710 (limite dos inventários estudados) e a véstia é citada entre 1625 e 1710. Entre 1649 e 1650 são mencionadas as bombachas e entre 1673 e 1681 aparecem as misteriosas cuecas, sobre as quais falaremos adiante. Na Pragmática (decreto suntuário português) de 1668, as bombachas são explicitamente citadas, e pelo que nos diz Bluteau (1712-1728), podemos defini-las como amplas ceroulas de seda eventualmente decoradas com rendas, peças da vestimenta masculina naquela altura proibidas por uma medida de caráter mercantilista para reduzir a demanda por rendas importadas (ROSSINI, p.15).

    Precisaríamos ir mais fundo no estudo dessas aparentes transformações para ter certeza se o fenômeno comprova a adoção de novas modas de vestuário ou se só revela simples mudança de denominação de peças já conhecidas. No caso da designação mantéu, por exemplo, sabemos que sua sucessora foi a palavra cabeção, que se manteve citada nos inventários até quase o fim do seiscentismo (1680). E o cabeção era uma peça do vestuário espanhol que estava em uso desde muito tempo (sua primeira ocorrência nos inventários paulistas, como vimos, remonta a 1590/1592). Se consultarmos o glossário no final deste trabalho veremos que mantéu e cabeção eram praticamente sinônimos.

    No caso da casaca, porém, suspeitamos que esse nome se referisse, após 1673, ao justaucorps francês, usado com a veste até o século XVIII. Além disso, existem outros indícios de que a moda masculina francesa estava sendo de fato introduzida na região paulista por volta dos anos de 1680. Um deles é o uso das cuecas, sobre o qual falaremos no momento oportuno, o outro é uma citação que se vê no inventário de Sebastião Pais de Barros, de 1688: 2 toalhas de pescoço. Em nossa opinião, essas toalhas seriam a versão local das golas rendadas francesas (rabats) usadas antes da adoção das gravatas na França, o que se deu por volta de 1670. Feitas de tecido quase inteiramente rendado, rodeavam o pescoço, sendo mais estreitas dos lados e mais longas na parte da frente, amarradas por cordões pendentes terminados por pequenos tufos de linha. Teriam essas toalhas de pescoço substituído o amplo cabeção à Balona espanhol, que antes se esparramava sobre os ombros e cuja última menção nos inventários paulistas procede de 1680. Como já vimos antes, em Portugal esse tipo de gola postiça de feitio francês já havia sido adotado pelo príncipe D. Teodósio em retrato datado por volta de 1653.

    Existem ainda outras indicações a demonstrar que a moda paulista se afastava rapidamente dos velhos modelos: a menção a tecidos novos, antes desconhecidos (colubritina – 1680, parrilha – 1694, crepe – 1698 e calamania – 1710, por exemplo) e a abolição do uso de galões e passamanes de cores contrastantes, imprescindíveis nos trajes da primeira metade do século XVII, e não mais citados depois de 1655 ou 1656. Na verdade, temos de admitir que essa tendência ao despojamento já estava presente na própria moda masculina hispânica. O traje de corte de D. Felipe IV no casamento da filha com o rei da França em 1660, por exemplo, era provavelmente de seda parda e apresentava poucos enfeites, tal como vimos nas figs. 47B e 47 C. Não é, portanto, por acaso que a expressão de uso antigo, referindo-se a peças inventariadas, ocorra por cinco vezes em documentos datados dos anos de 1648 a 1672.

    Sob este aspecto, importantíssimo é o inventário de Matias Rodrigues da Silva, datado de 1710, pois nele, ao lado do gibão tradicional, se infere a presença do traje masculino à francesa, graças à menção a casaca, véstia e calção de seda (ver glossário).

    Por outro lado, com relação ao vestuário feminino paulista de fins do século XVII praticamente nada se sabe. Supomos que se manteve fiel às influências hispânicas por muito mais tempo. Mas pelos inventários deduzimos que também ele passou por um processo de renovação estética, durante a segunda metade do século XVII.

    Na Espanha, os imensos guardinfantes usados na corte durante anos 1650 desapareceram logo a seguir, sendo substituídos por armações menores de formato evasê. As saias, antes esticadas sobre as armações, tornaram-se bastante pregueadas. As peças que antes sempre se sobrepunham ao gibão feminino, guarnecidas de mangas perdidas, deixam de ser citadas por volta da metade do século, ficando o gibão sozinho e com a aparência totalmente renovada.

    Foi provavelmente sob a influência do traje feminino francês, desde o casamento da infanta Maria Teresa com Luís XIV, que o gibão feminino espanhol retomou o formato de cone invertido, agora mais acentuado do que nunca. O decote do gibão aumentou, tornando-se completamente reto, formato que provocou o desnudamento completo dos ombros das mulheres, uma ousadia que na própria França nunca existiu. A cintura também tornou-se muito baixa e fina, fazendo com que o gibão ganhasse uma longa ponta, estreita e aguda, na parte dianteira (a peça de tão espartilhada se transformou numa verdadeira couraça de aspecto geométrico, recoberta de tecido liso e esticado) (fig.49 E). As mangas da camisa foram durante certo tempo extremamente volumosas, estufadas e aparentes, mas a partir de meados dos anos de 1670, ajustaram-se sob as mangas estreitas e compridas dos gibões, concentrando-se então os volumes exagerados das mangas da camisa na região dos punhos, fechados por grandes laços de fitas. Todas as transformações formais ora descritas ocorreram nos trajes femininos usados na corte espanhola e, talvez, fossem válidas também para os trajes similares portugueses até 1693, como vimos, mas não poderíamos dizer se alguma dessas mudanças estéticas teriam chegado a refletir de algum modo nos trajes das mulheres paulistas.

    É praticamente certo que não repercutiram, embora desconheçamos a maneira pela qual a moda feminina evoluiu no Brasil durante os últimos anos do século XVII e nos primeiros anos do século seguinte. A esse respeito, evocamos aqui uma certa figurinha de mulher pintada num painel datado de 1716-1719, situado no forro de uma igreja do Rio de Janeiro (cena milagrosa da vida de Santo Antônio, na capela-mor da igreja conventual desse orago), que está vestida de um modo que bem poderia ser o usado pelas brasileiras de então. O seu corpete apresenta um discreto decote, ligeiramente arredondado, deixando ver a borda superior da camisa, enquanto a parte inferior da peça termina em bico mais ou menos agudo. As mangas dessa vestimenta vão até os cotovelos e por baixo delas se vêem as mangas compridas do gibão arrematadas com punhos semelhantes aos exemplares espanhóis da primeira metade do século XVII, só que de tamanho bem mais comedido. As saias têm muitas pregas; a de cima está meio levantada, mas aparentemente é usada sem nenhuma armação nem enchimento em torno da cintura. Sobre os ombros a mulher traz um xale ou antes lenço, que bem pode ser uma toalha de toucar que simplesmente escorregou da cabeça.

    Esse traje, hipoteticamente, indicaria a moda adotada pelas brasileiras em seguimento ao vestuário usado no século anterior. Não há, porém, nenhum embasamento documental que dê consistência ao que estamos aventando e só investigação mais dilatada poderá comprovar se estamos ou não no caminho certo com relação a esse assunto.


    Algumas peças encontradas nos inventários investigados por Silva Bruno

    Dentre os inventários selecionados pelo historiador Ernani Silva Bruno em seu já mencionado trabalho, destacamos alguns, dos quais pinçamos as peças de roupa que mais nos atraíram. A esses inventários, juntamos outros escolhidos diretamente do AESB:

    Inventário de Maria Gonçalves, 1599

    Chapéu de feltro e seu véu

    O chapéu redondo feminino visto por John Mawe em São Paulo (1808), tal como o roupão das paulistas por ele descrito, seria uma sobrevivência da indumentária ibérica em voga durante o quinhentismo, já usada pela portuguesa representada por Cesare Vecellio em 1590 (De gli Habiti Antichi e Moderni de Diversi Parti Del Mondo, fig. 263). Esse acessório de feltro, originário da Espanha, disseminara-se durante o século XVI pela Europa e pela América Latina, onde até hoje um chapéu semelhante faz parte da vestimenta tradicional usada pelas índias bolivianas. Também em Antuérpia, cidade flamenga durante muito tempo sob o domínio dos espanhóis (1583-1713), as mulheres usavam, no início dos Seiscentos, um grande véu de cor escura, e sobre ele, punham uma espécie de boina estilizada ornada com um grande pompom, chamada houpette (fig.51).

    Quanto ao véu sob o chapéu, também foi usado por paulistas e mineiras até o século XIX, aparecendo em ilustração de autoria de Johan Moritz Rugendas (1802-1858) denominada Habitantes de Minas Gerais (fig.52A).

    Vasquinha de Portalegre

    Aqui parece termos algo que passou despercebido a Silva Bruno e que, em nossa opinião, merecia investigação mais ampla. Bruno diz que o tecido chamado portalegre era originário de Florença, baseando-se no único inventário que arrola uma saia de portalegre florentina (inventário de Francisco Rodrigues Barbeiro, 1623). Temos outra opinião a respeito.

    Portalegre é uma cidade de Portugal que no século XVI se destacava como produtora de tecidos de lã. Assim, preferimos ver nesse tecido, geralmente empregado na confecção de vasquinhas, ou seja, saias de cima, um produto de procedência genuinamente lusa.

    De acordo com os inventários, havia portalegres de diferentes cores (azul, azul cor do céu, parda, azeitonada e até prateada). Eventualmente encontramos esse tecido empregado na confecção de peças de vestuário masculino.

    Reforçando nossa suposição, encontramos uma observação feita por Rafael Bluteau (1712-1728) acerca da cidade de Portalegre. O dicionarista afirma que ela era rica “pelo trato de pannos de cor que nella se tecem”. Essa florescente manufatura de panos de lã certamente iria arruinar-se após o Tratado de Methuen (1703), celebrado entre a Inglaterra e Portugal. Tratado que ocasionaria, de acordo com certos historiadores, a importação maciça de tecidos de fabricação inglesa e a destruição da nascente manufatura portuguesa. Isso parece ser verdade no que toca aos tecidos de Portalegre, pois nenhum dicionário da língua portuguesa posterior ao de Bluteau faz menção a esse tipo de pano de lã.

    Três mantéus com seus punhos, de homem

    Nos fins do século XVI, ocorreu com os punhos das camisas o mesmo que acontecera com a gola dessa vestimenta. Tornaram-se peças independentes, enfiadas nos pulsos depois de colocada toda a roupa. Eram peças feitas de linho fino (ou aqui em São Paulo de algodão) e muito engomadas, fazendo conjunto com as golas postiças. Certamente as rendas que decoravam os punhos tinham o mesmo desenho dos mantéus e cabeções. No Museo del Traje em Madrid está exposta uma peça desse tipo, talvez o único exemplar a sobreviver até hoje (fig.53).

    Nos inventários lemos também: volta de rendas e seus punhos de rendas (inventário de Diogo Dias de Moura, 1627), três mantéus com um par de punhos de ruão (inventário de Clemente Álvares, 1641) e quatro mantéus de cassa e dois pares de punhos (inventário de Domingos Nunes Bicudo,1650).


    Inventário de Gonçalo da Costa, 1599

    Mantéu de abanos sem punho

    Segundo Bluteau, 1712-1728, o mantéu de abanos era o pregueado em forma de tubos ou ondas, que adotaria muitas variações em termos de largura e altura até as primeiras décadas do século seguinte. Os franceses chamavam essa peça de fraise. Surgiu na segunda metade do século XVI e na Espanha ainda era esporadicamente usada na corte em 1660, quando predominava a golilha em forma de meia-lua, sobre a qual punham uma gola de tecido engomado do mesmo formato. Nos trajes menos formais de meados do século XVII prevalecia então a modalidade à Balona (ver mantéu no glossário) (figs. 54 A, 54 B).


    Inventário de Maria Jorge, 1611-1613

    Camisa com cabeção, de linho

    Aqui o cabeção parece ser uma gola costurada na camisa à volta do pescoço e não uma peça independente (fig.18). Nos inventários paulistas achamos também: quatro camisas de mulher com cabeções de pano de linho (inventário de Catarina de Pontes, 1621). Golas fixas sem dúvida. Em contrapartida há: 6 camisas de pano de algodão com seus mantéus de pano de linho (inventário de Pedro Nunes, 1623), sendo os mantéus, aqui, decerto, golas postiças. E encontramos também: cabeção de ruão de mulher (inventário de Ana Luís, 1644) e dois cabeções de pano de linho (inventário de Antônio Pedroso de Barros, 1652), o que comprova que o cabeção podia ser tanto peça costurada, quanto peça independente, tendo substituído com o tempo o nome mantéu.

    Cinta vermelha
    A cinta vermelha parece ter sido um atraente detalhe do traje feminino paulistano no início do seiscentismo. Outros inventários trazem consignado esse tipo de acessório: cinta vermelha de mulher (inventário de Paula Fernandes, 1614), cinta vermelha (inventário de Maria Jorge, 1611/1613), duas cintas vermelhas (inventário de Catarina de Pontes,1621), faixa vermelha de cochonilho (inventário de Ana Luís,1644), etc. Detalhe nunca mencionado em nenhuma obra dedicada à história de São Paulo e que teria passado despercebido se não fosse essa insistente menção nos inventários paulistas.

    É possível que essa cinta encarnada refletisse de alguma maneira uma moda internacional. Descobrimos que durante as primeiras décadas do XVII damas usavam uma faixa ou fita em seus vestidos por cima do corpinho, atada com laço ou adornada com roseta. Encontramos, por exemplo, esse tipo de enfeite em vestido da Madalena penitente (1596-1597), quadro de Caravaggio (1571-1610) (fig.55). Localizamos também um retrato datado de c. 1635 em que uma princesa alemã traz a cintura cingida por uma faixa de tecido vermelho (fig. 56) (BOUCHER, p. 275, fig. 648). A que tudo indica, ambos os exemplos podem ter sido bastante semelhantes ao usado pelas mulheres paulistas.

    Mantéu de sarja

    Quer nos parecer que se trate de um equívoco cometido na transcrição do documento original. Se era de sarja, a peça em questão devia ser manto e não mantéu. Os mantéus eram feitos de lençaria (ver glossário)


    Inventário de Salvador de Lima, 1612 (AESB)

    Toalha de seda de mulher

    No inventário de Salvador de Lima só foram relacionados trajes femininos. Entre eles, uma peça pouco citada: toalha de seda de mulher. O uso dessas toalhas remontava à Idade Média. Eram feitas de fino tecido branco e com elas as mulheres durante séculos envolveram as cabeças, deixando apenas o rosto descoberto (figs. 57A, 57B, 57C).

    No tempo dos inventários paulistas já eram pouco usadas, pois em só sete deles as peças foram encontradas, tendo a última menção ocorrido em 1632. Confeccionado em linho (1620), cambraia (1619), volante (1616) e seda (1612 e 1624), era o toucado apropriado para ficar sob o pesado manto de sarja. Peça típica do hábito das freiras e das viúvas. No inventário de Maria Lucas de 1632, há mesmo uma toalha de luto de canequinha [canequim]. Essa última peça nos traz à lembrança um quadro português do século XVI, em que figura uma velha mulher talvez coberta com uma beatilha (fig 58) e o impressionante traje de viúva usado pelo resto da vida pela Rainha Mariana da Áustria (1634-1693), em atenção à memória de seu falecido tio e marido, Filipe IV da Espanha (1605-1665). A rainha-mãe, que governava em nome de seu filho menor Carlos II (1661-1700), envergava amplo escapulário sobre o qual punha um corpete espartilhado e cobria-se com véus brancos deixando apenas o rosto aparente, pondo por cima da cabeça longo véu negro que ia até os pés, semelhante aos hábitos das religiosas de então (fig. 59).


    Inventário de Paula Fernandes, 1614

    Botinas vermelhas e chapins de Valença

    Neste inventário vemos os famosos chapins de Valença já mencionados no Auto da Alma (1508), de Gil Vicente (c.1465-c.1536). Chapins que conferiam à mulher um andar majestoso e compassado. Quer nos parecer que as botinas vermelhas faziam conjunto com os chapins, que em geral eram desta cor. Nesse caso, a mulher calçava os chapins depois de ter posto os sapatos. Nos inventários lemos: chinelas de cortiça (inventário de João do Prado,1594); pares de chapins (inventário de Maria Gonçalves, 1599); chapins de Valença (inventário de Maria Jorge,1611-1613); sapatos amorados de cordovão (inventário de Francisco de Seixas, 1615); 2 pares de chapins de Valença com suas botinas ( inventário de Isabel da Cunha, 1616); dois pares de botinas de cordovão vermelhas – chapins vermelhos – chapins de Valença (inventário de Francisco Velho,1619); chapins de Valença lavrados e botinas vermelhas (inventário de Maria Tenória, 1620), chapins de Valença com seus sapatos vermelhos (inventário de Catarina de Pontes,1621); calçado vermelho (inventário de Henrique de Cunha,1623); sapatos de carneira vermelha com uns chapins de Valença (inventário de Maria da Gama, 1624); chapins com suas barras de prata pequenos (inventário de Ana Pedrosa, 1646); chapins franjados de prata, forrados de veludo negro (inventário de Maria de Silva, 1655); chapins e chinelas de mulher (inventário de Antônio Pedroso de Barros,1652).

    Segundo o Elucidário das palavras, termos e frases que em Portugal antigamente se usaram e que hoje regularmente se ignoram (1765), de Frei Joaquim de Santa Rosa de Viterbo (1741-1822), os chapins chegavam a acrescentar um côvado (66 cm), no mínimo, à altura das mulheres que os usavam. Os exemplares existentes no Museo Del Traje em Madri e os representados por Vecellio mostram que eles eram em geral mais baixos.


    Inventário de Francisco Velho, 1619

    Dois mantéus de folhagem

    Trata-se aqui de mantéus feitos de folhos, babados franzidos ou pregueados. Provavelmente eram mantéus de abanos. (ver glossário).

    Dois pares de meias de algodão com seus escrupins

    As meias citadas nesta passagem devem ser de cabrestilho, ou seja sem pé, já que acompanhadas de escrupins ou escarpins, calçados feitos de lençaria (ver glossário).


    Inventário de Matias de Oliveira, 1624

    Calções de perpetuana

    Um retalho do tecido de lã de que eram feitos os calções acima, com três côvados (1,98m) de comprimento, valia 4$ooo réis, segundo os inventários (LIMA, p.125). Mais ou menos na mesma época, umas palhoças (fogos de palha) haviam sido avaliadas pelo o mesmo valor e 18 alqueires de feijão valiam a metade, ou seja, 2$000. Um sítio, por sua vez, custava apenas quatro vezes mais (16$000 réis). Tudo isso a nosso ver define em termos relativos quanto custava a unidade linear (vara) do tecido em questão.

    Seria muito produtivo desenvolver um estudo em que pudéssemos determinar os preços dos tecidos e o valor da avaliação de cada peça, comparando-os com o valor de outros bens da época. Descobriríamos então até que ponto iam os paulistanos do século XVII na aplicação de seus recursos a fim de obter bens altamente simbólicos, como trajes domingueiros.

    Segundo José Alcântara Machado, os trajes completos atingiam então valores altíssimos: 8$000 réis valia o traje de Francisco de Proença, composto de calção de tabi encarnado, gibão de mesma cor e tecido, mangas de tiruela negras [inventário de 1638]. Dez mil réis era valor da capa e roupeta de gorgorão de Diogo de Mourão [provavelmente o nome do falecido está errado, deve ser o inventário de Antônio Pedroso de Alvarenga, de 1643, segundo o AESB]. E avaliado em 18 mil réis era o vestido (conjunto de roupeta, calção e capa) de pano azul fino pertencente a Rafael de Oliveira [inventário de 1648].

    Os trajes das paulistanas ricas apresentavam valores ainda mais elevados. Alcântara Machado cita o vestido de Mécia Bicudo (e não Maria como ele diz), avaliado em 20$000 réis, formado por vasquinha de cetim preto, adasmacado, ornada com 12 passamanes, e saio de melcochado negro, ornado a dois, com manto de recamadilho (inventário de 1631). O vestido formado de anáguas, gibão e roupão pertencente a Catarina de Góis tinha valor ainda maior, atingindo a cifra de 32$000 réis (inventário não encontrado no AESB). E o traje de veludo lavrado com seu manto de seda, pertencente ao espólio de Isabel Ribeiro (inventário não encontrado no AESB), atingiu o auge da extravagância em matéria de moda paulistana, tendo sido avaliado por não menos do que 40$000 réis!

    È uma pena que o AESB tenha desprezado as avaliações das peças arroladas nos inventários, pois possibilitariam comparações bem interessantes.


    Inventário de Mateus Leme, 1628

    Manto de abanos

    Como já reparamos antes, há aqui um equivoco, provavelmente cometido ao ser feita a transcrição dos documentos originais. De abanos é mantéu e não manto (ver glossário).


    Inventário de João Tenório, 1634

    Cerolas de pano de linho com rendas

    Essas cerolas nos trazem à lembrança as bombachas que seriam proibidas pela Pragmática de 1668, como dissemos atrás, e que se fixariam no traje regional dos gaúchos. Cerolas adornadas com longas franjas, que escapavam das bocas das pernas dos calções, foram vistas por Debret, que representou um índio paraguaio civilizado usando trajes adornados com esses detalhes decorativos (fig.60).


    Inventário de Antônio Pedroso de Alvarenga, 1643 (AESB)

    Este inventário traz um arrolamento de trajes que fogem do habitual. Há menção a tecidos novos: tabi, catalufa, lamê e chamalote de flores. As peças de vestuário mencionadas nos parecem particularmente requintadas:
      Vestido de estamenha, calção e roupeta gilpado [golpados?] entreforrado de tafetá azul Armador de tabi com umas mangas de lamê Armador de bombazina preta com umas mangas de damasco pretas Capa e roupeta de gorgorão de seda Vestido de mulher de cetim preto (saia e quinze passamanarias) Colete de chamalote de flores azuis, guarnecido de passante amarelo Gibão de lamê de flores guarnecido de galão de ouro com corrente e oito botões de prata sobredourados, forrado de tafetá azul Saia de cetim aveludado com seus passamanes, preto Anáguas de catalufa amarelo Chapéu sem forro 2 camisas de pano de linho Ceroulas de pano de algodão.

    Inventário de Gaspar de Cubas, 1648 (AESB)

    Outro arrolamento particularmente interessante sob o aspecto do luxo das vestimentas é o de Gaspar de Cubas. Como o texto on line está infelizmente estropiado em alguns trechos, foi necessária a confrontação com o texto publicado no volume 37 da coleção impressa:
      Manto de tafetá com sua renda de ponto Vestido de mulher com saia e botão de veludo azul, o saio e treze espeguilhas de ouro sobre tafetá azul Saia de damasco forrada de tafetá azul com doze passamanes largos de ouro e prata Calção e roupeta de portalegre, com gibão de belbutina, picado, e mangas de tafetá preto Capa e roupeta de baeta Um vestido de damasquilho verde Meias anáguas com seu chouriço de veludo azul com seu galão de ouro no saio e todo agaloado de ouro com suas flores [?] de lises e bordado de tafetá azul e seu gibão....apassamanado de prata Chapéu coberto de veludo verde e forrado de tafetá verde, todo passamanado e com seu véu de passamane de prata e ouro.

    Inventário de Ana Saraiva, 1672

    Meias inglesas, com muito pontos cor de cobra

    A partir desse inventário surgem pares de meias inglesas. Artigo certamente comercializado em Portugal em razão dos acordos comerciais assinados entre este país e a Inglaterra depois da Restauração (acordos de 1642, 1654 e 1661), como forma de contrapartida à defesa inglesa prestada a Portugal durante a guerra contra a Espanha, acordo esses que inundariam o país com artigos manufaturados britânicos, sobretudo alimentos e roupas. As meias inglesas não deixariam de demonstrar também o progressivo afastamento do tradicional traje espanhol.

    Nos inventários paulistas temos ainda: um par [de meias] inglesas (inventário de Francisco Pedroso Xavier, 1680) e par de meias de seda inglesas (inventário de Manuel Rodrigues de Arzão, 1698).


    Inventário de Gaspar Sardinha, 1679 (AESB)

    Cuecas encarnadas com gibão de Serafina
    Cuecas de tafetá
    Camisa de panico com umas cuecas


    Segundo Bluteau (1712-1728), cuecas eram “huns calçoensinhos, que se trazem debaixo dos calçoens, & se atão debaxo dos joelhos, por amor do frio. Houve tempo, em que serviam de calçoens.”

    Essa descrição confusa do dicionarista não recupera de fato o significado do que seriam as cuecas citadas nos inventários paulistas, relativos ao período que vai de 1673 (inventário de Francisco Cubas Preto) a 1681 (inventário de Manuel Fonseca Osório).

    Essas peças de roupa eram confeccionadas, não com linho ou algodão como as ceroulas, mas com tafetá, serafina e baeta preta. Por vezes, formavam conjunto com outras peças do vestido masculino, como é o caso do inventário de Gaspar Sardinha de 1679, em que eram usadas cuecas encarnadas com gibão. Alcântara Machado (p.90) menciona um traje deixado por Francisco Cubas Preto (1673), não devidamente transcrito nas fichas on line do AESB: casaca forrada de tafetá acamurçado, com abotuaduras de prata, cuecas do mesmo, calção forrado de bertangil com passamanes e fitarias, ou seja, fica claro por essa passagem que as cuecas eram vestimentas usadas concomitantemente com calções.

    É evidente que essas cuecas eram peças exteriores, não sendo senão, em nossa opinião, a versão lusa das rhingraves (ver glossário) francesas já mostradas no retrato do príncipe herdeiro do trono português D. Teodósio em 1653. Tratava-se portanto de larguíssimos calções sobrepostos aos calções habituais, com a verdadeira aparência de saiotes, por vezes ornados de fitarias, constituindo prova inconteste do precoce afrancesamento das vestimentas masculinas paulistas na segunda metade do século XVII.


    Inventário de Matias Rodrigues da Silva, 1710 (AESB)

    Por esse inventário é possível intuir a transformação do traje paulista. Há tecidos novos (carrião, calamania e crepe), peças de vestuário de uso específico de irmandades religiosas (opa e balandrau), uma quantidade razoável de camisas e ceroulas, e, no caso masculino, vemos, lado a lado, vestimentas de tradição hispânica, gibões de seda roxa, de seda verde e de seda preta, convivendo com trajes à francesa, compostos de casaca, véstia e calções (fig.61a, 61B, 61c). Note-se que não há mais menção nem a golpes nem a galões ou passamanes aplicados nas peças.

    Quanto aos trajes femininos, vemos que os vestidos agora se constituíam apenas de gibão e saia (tal como os trajes femininos espanhóis depois de 1670). Podemos apenas supor que a modelagem das peças continuava tentando se aproximar das usadas pela corte espanhola, que naquela altura conferira outra aparência ao guarda-infantes, de tamanho bem mais discreto e de modelo ligeiramente campaniforme. A armação suportava então saias com largas pregas e longa cauda e o corpete apresentava modelo de mangas bastante diferenciado. Sobre os ecos dessa moda que teriam chegado às paulistas – se é que chegaram – nada podemos dizer.
      2 camisas de bretanha 8 camisas de linho 11 ceroulas Chapéus finos Opa de tafetá carmezim Balandráu de crepe. Vestido de crepe (capa e casaca com calção e véstia de seda honesta) Vestido de capa e casaca de baeta preta com véstia e calção de calamania Manto de carrião Gibão de seda preta Gibão de seda roxa Saia de calhamaço preto Saia de baeta vermelha com palheta de ouro falso Vestido de crepe (gibão e saia) Gibão de seda verde Vestido de pano fino pardo, com véstia e calção de seda 2 pares de meias de seda pardas Capote de barregana azul.

    Cores e texturas nas vestimentas paulistanas do seiscentismo

    Uma dos aspectos que mais nos chamam a atenção nos inventários paulistas é a menção a cores e acabamentos das vestimentas arroladas. É bem conhecida a preferência da indumentária espanhola de meados do século XVI pelo negro – predominância que no século seguinte será relativizada, mantendo-se, contudo, preferência por tons sombrios ou pela seda preta como cor do traje formal masculino de corte (fig.62 A e 62B) –, mas nos inventários surgem peças de diferentes tons, aparentemente fortes, peças que por seu turno são guarnecidas com detalhes decorativos em tons contrastantes. A cor da maioria das peças, porém, não é determinada. Perguntamo-nos se não seriam negras em sua maioria, já que o preto, como dito, era a cor predominante na indumentária de influência espanhola, embora o traje espanhol informal de meados do século XVII já se apresentasse bastante colorido (fig.63).

    Chapéus, carapuças e barretes

    Analisando os inventários, temos que os chapéus eram quase sempre pretos. Não deixa de ser curioso que a cor dessas peças acessórias quase sempre vem expressa. Há menção também a chapéus pardos. Preto e pardo são as duas cores dominantes dos chapéus supostamente feitos de couro com pelo. Mas há outras, relativas a chapéus feitos de tecido, em geral femininos. Chapéu acompanhado de seu véu é, ao que parece, sempre peça feminina.

    Nos primeiros inventários paulistas temos, por exemplo: chapéu de tafetá azul (inventário de Mécia Roiz, 1605); chapéu preto de Segóvia (inventário de Antônio da Fonseca, 1619); três chapéus pretos do Porto (inventário de Maria Tenória, 1620); chapéu preto com sua trança [trancelim, às vezes de prata] (inventário de Baltazar Nunes, 1623); chapéu de mulher, forrado de melcochado preto passamanado (inventário de Diogo Dias de Moura, 1627); chapéu branco de mulher (inventário de Maria Lucas, 1632), chapéu negro com seu véu de tafetá rosa (inventário de Manuel Fernandes Sardinha, 1633); um esplêndido chapéu coberto de veludo verde e forrado de tafetá verde, todo passamanado e com seu véu de passamane de prata e ouro (inventário de Gaspar de Cubas, 1648); chapéu de cor com seu colchete de prata sobredourado (inventário de Sebastiana Ribeiro, 1649); chapéu de Bardá branco (inventário de Maria da Silva, 1655).

    No caso das carapuças (que supomos fossem brancas em sua maioria) e dos barretes, ambos tipos de peças feitas de tecido, temos: barrete vermelho (1599), carapuça parda (1603 e 1628), carapuça de pano preto (1615) e carapuça roxa (1652). As coifas podiam ser vermelhas (1599), enquanto uma coifa de seda roxa e amarela, era peça provavelmente feminina (1652).

    Cores nas peças do traje masculino

    Peças masculinas cuja cor preta é explicitamente mencionada nos inventários, encontramos inúmeras: calções pretos (1594); ferragoulo de pano preto (1599); ferragoulo de baeta preta (1607); calções de gorgorão preto forrado (1607); botas pretas (1607); calções de pano de algodão e raxeta preta (1614); calções de gorgorão preto (1615); ferragoulo de baeta preta de homem (1621); calções de gorgorão pretos forrados de pano de algodão (1623); botas picadas pretas (1623); sapatos de cordovão preto (1623); botas pretas (1623); ligas de rosas [rosetas] negras (1623); roupeta de damasco negro (1634); meias de seda negra (1634); calção de pano fino preto (1641); capa de pano fino preto (1641); mangas de damasco preto (1641); meias pretas de algodão (1641); duas meias pretas de seda (1649); calção e roupeta de sargeta preta (1650); capa de baeta preta (1650); gibão de tabi preto com mangas de tafetá aveludado (1650); mangas de damasquilho pretas (1650); ligas pretas de tafetá (1650); capa de baeta preta (1650); calção e roupeta de baeta preta (1652); calções de damasco negro com gibão de veludo negro (1652); colete de damasco preto (1652); meias de seda preta (1652); ligas de seda preta (1652); vestido de baeta preta, composto por capa, calção e gibão (1680); gibão de seda preta (1710) e vestido de capa e casaca de baeta preta com véstia e calção de calamania (1710) , etc.

    Devemos notar que meias e ligas, quando negras, foram incluídas na relação acima, embora seja difícil atribuí-las a um sexo determinado. Sabe-se contudo que as ligas adornadas com rosetas pertenciam ao sexo masculino.

    Veremos agora peças masculinas de outras cores ou enfeitadas com bandas e galões de cores contrastantes, às vezes cores complementares, moda que se manteve constante até o início da segunda metade do XVII. Serão citadas apenas algumas delas: roupeta de gola preta e mangas de telinha (1599); meias verdes (1607); ferragoulo pardo (1611-1613); gibão de holanda frisada vermelha de homem (1614); roupeta e calções de raxeta parda forradas (1614); gibão de bombazina rajada de homem (1615); calção de raxa verdoso, forrado de pano de algodão e roupeta da mesma raxeta forrada de bocaxim roxo (1619); capote de pano pardo guarnecido com baeta verde (1619); roupeta de baeta curta guarnecida de tafetá pardo (1619); vestido verde-mar (capa, calções e roupeta, esta de tafetá da mesma cor) (inventário de Violante Cardoso, 1620); gibão de bombazina listrado (peça masculina?) (1621); gibão de telilha branca (peça masculina?) (1621); roupeta e calções de pano azul (1621); cotão vermelho (peça masculina?) (1623); ferragoulo de pano azeitonado (1623); ferragoulo de pano roxo com forro preto (1623); gibão de tafetá azul (1623); roupeta verde e roupeta e calções de raxeta parda (1623); gibão de pano de algodão listrado (1624); calções e roupeta de pano roxo (1625); meias de seda cor do céu (1625); meias de seda encarnadas (1625); meias de seda amarelas (1625); meias de lã roxas e meias de lã cinzentas (1628); jubão de seda verde guarnecido de tafetá amarelo (1633); vestido de baeta vermelhosa (capa e roupeta) (1633); vestido de raxa pardo em que entra ferragoulo (1633); meias de seda verde (1633); ferragoulo pequeno pardo bandado a 5 bandas de perpetuana vermelha (1634); gibão de tafetá azul com forro de pano de algodão (1634); meias de seda verde-mar (1634); ligas de rosa [roseta] de tafetá vermelho (1634); calção de raxeta azeitonada forrado de pano de algodão (1638); mangas de tafetá amarelo (1638); meias de seda amarela (1638); colete de catassol guarnecido de espiguilha verde (1638); mangas de bombazina pardas anteforradas de tafetá preto (1638); vestido de homem de perpetuana verde (1638); gibão branco (1641); mangas de pano de algodão brancas (1641); roupeta forrada de tafetá verde de perpetuana (1646), gibão branco de felpa (1646); gibão de barregana com mangas brancas (1646); meias de seda amarelas (1646); ligas com espeguilha de prata (1646); capinha de baeta vermelha (1650); gibão de tabi vermelho e branco (1650); gibão de damasquilho branco (1652); liga de tafetá pardo (1652); casacão de barregana azul (1698); capote de barregana azul (1710); gibão de seda preta (1710); gibão de seda roxa (1710); gibão de seda verde (1710); vestido de pano fino pardo com véstia e calção de seda (1710) e dois pares de meias de seda pardas (1710).

    Além de tecidos com cores variadas, eram usadas nos meados do XVII peças executadas com chamalote de flores, tanto nas roupas masculinas quanto femininas. Em peças masculinas temos: vestido de marselana (calção, roupeta, e gibão de chamalote de flores) (inventário Pascoal Delgado, 1650) e calção e roupeta forrado de tafetá azul com armador de damasco [?] de lã com mangas de chamalote de flores (inventário de Sebastiana Ribeiro, 1649).

    As meias de cores encontradas nos inventários foram em geral incluídas na relação acima, mas quase nunca é possível discernir se são de uso masculino ou de uso feminino.

    Cores nas peças do traje feminino

    Devemos-nos recordar, antes de mais nada, que os mantos femininos de sarja ou burato e os saios femininos eram, em geral, pretos, mas isso quase nunca é declarado nos inventários. A persistência do preto na moda feminina deve ser vista, sem dúvida nenhuma, como herança da moda espanhola dos Quinhentos, influência que se manterá firme em São Paulo por todo o século XVII. Damos abaixo a relação de algumas vestimentas femininas cuja cor preta vem explicitamente consignada: saia de tafetá aveludado preto (1614); saio de baeta preta guarnecido de tafetá preto (1616); gibão de tafetá preto (peça feminina?) (1621); saio e saia de melcochado preto (1621); dois mantos de sarja preta (peças femininas?) (1625); manto de tafetá negro (peça feminina?) (1633); vestido de chamalote de flores preto (saia, saio e gibão) (1649); capa de baeta preta (peça feminina?) (1650); saia de veludo preto (1652); saio preto de melcochado (1652); vestido de mulher de serafina preta (1672) e saia de calhamaço (talvez calamaço) preto (1710).

    As peças femininas de cor eram bastante variadas, não havendo na época o conceito de que certas cores, texturas ou padrões decorativos deveriam ser de uso exclusivo desse sexo. Citaremos algumas: gibão de cetim enramado [tecido ornado com flores e ramos] (1599); meias de agulha verde (1599); saia de tafetá azul (1599); saia de palmilha vermelha e saia azul de palmilha (1599); saio de tafetá vermelho (1599); gibão pardo de mulher (1599); saia de pano azul barrado (1607); corpinho de cetim carmesim com barra de cetim azul (1611-1613); saia azul chã (1611-1613); saia de pano azeitonado com barra de veludo verde (1611-1613); vasquinha de cetim roxo (1611-1613); cinta vermelha de mulher (1614); saias azul de portalegre (1614); ligas amarelas (1614); botinas vermelhas (1614); meias de lã roxa (1615); ligas de tafetá pardo (1615); gibão de holanda rajado de preto (1616); gibão de bombasina roxa guarnecido de tafetá amarelo para abotoar com seus botões e retrós (1616); saia de pano azul ferrete (1616); saia e gibão de algodão tinto (1616); cinta vermelha (1619); saia de pano azul de Portalegre guarnecida por baixo de bocaxim vermelho (1619); dois pares de botinas de cordovão vermelhas e chapins vermelhos (1619); duas cintas vermelhas (1621); gibão de tafetá da India acatassolado [isto é, com efeito furta-cor] (1621); saia de londres azul (1621); saia de pano azeitonado (1621); saia de raxeta florentina com 3 espeguilhas verdes (1621); saio de pano fino azeitonado com barra de veludo verde (1621); saio e saia de tafetá azul (1621); chapins de Valença com seus sapatos vermelhos (1621); vestido de tafetá azul (saio, saia e gibão) (1623); vestido de pano azul forrado de pano de algodão guarnecido de tafetá (1623); vestido de pano roxo, guarnecido de tafetá (1623), meias brancas de linha de algodão (peças femininas?) (1623); saia azul de palmilha (1623); saia verde barrada de cetim (1623); gibão de tafetá pardo de mulher (1624); saia amarela de pano com suas barras de veludo verde (1625); mantilha pequena de pena de cores com um topete de penas (1634); gibão de tabi amarelo guarnecido de passamane preto, de mulher (1638); gibão de tela azul fina guarnecido de carassulilho de ouro sobre pestana leonada, de mulher (1638); saia de raxa parda (1638); vasquinha e saia de veludo roxo e amarelo (1638); gibão de mulher de tafetá azul (1641); saia de grise azul e saia de grise roxo (1641); corpinho de chamalote de flores (1642); faixa vermelha de cochonilho (1643); saia de pano azul e saia de pano roxo (1643); meias de seda azul (1643); vestido de mulher, de baeta verde (anáguas e roupa) (1650); vestido de menina (anáguas e roupetilha) de serafina azul (1650); capinha de mulher, de baeta verde (1652); roupetilha de baeta verde (1652); capa de baeta verde, de mulher (1672), e saia de baeta vermelha com palheta de ouro falso (1710).

    Tecidos variados e efeitos contrastantes

    De acordo com Silva Bruno, nos inventários paulistas do século XVI e XVII são mencionados 76 designações diferentes de tecidos usados na indumentária do período (p.29). Muitos dos quais para nós completamente desconhecidos: barselana, barberisco, campanha, carrião, marrelana, mosquilho, palmilha, paratudo, requinta, recamadilho, tritaina, calamania, entre outros. Todos esses tecidos, no entanto, agrupavam-se em apenas quatro categorias de matéria prima: lã, linho, algodão e seda, embora saibamos que alguns deles fossem constituídos de dois ou mais tipos de fibras de origem diferente entremeadas, como o chamalote, resultante da trama de fios de lã com fios de seda. Muitos eram produzidos na Europa e importados, outros vinham da Ásia e da África. Alguns eram feitos no próprio planalto de Piratininga, em geral grosseiros tecidos de algodão.

    No século XVII os trajes femininos paulistanos, de modo geral, procuravam atenuar o predomínio da cor preta nos mantos, saios e vasquinhas com o uso de peças de roupa de cor intensa: azul, vermelho, verde, amarelo e roxo. As vestimentas, por sua vez, adornavam-se com bandas de cor diferente, às vezes de tecido igual ao do resto da peça, às vezes com texturas contrastantes. Neste último caso, a lã áspera ou opaca ganhava brilho com a seda e o cetim. O veludo liso contrapunha-se ao damasco, cujos desenhos brilhosos se destacavam contra um fundo opaco. O tabi lustroso contrapunha-se ao tafetá aveludado. A baeta felpuda iluminava-se com o brilho sedoso do tafetá.

    Nas peças masculinas o preto e o pardo parecem predominar, mas cores vivas também não faltam. No início do século XVII, as meias assumem tons nada discretos: verde-mar, azul céu, amarelas, encarnadas, alaranjadas e roxas. Há eventual menção a cores singulares, então muito apreciadas: ferragoulo de raxeta cor de pombinho [cinza médio com ligeiro tom de rosa ou azul] (inventário de Francisco de Brito e Isabel Correia, 1616); ferragoulo de perpetuana cor de telha (inventário de Maria Tenória, 1620); ferragoulo azul da cor do céu (inventário de Francisco Lourenço, 1624); roupeta de perpetuana cor de flor de pessegueiro (Rafael Dias, 1625); vestido de raxeta (calção e roupeta) cor de rato (inventário de Damião Simões, 1632); meias inglesas com muitos pontos cor de cobra (inventário de Ana Saraiva, 1672) e meias de seda cor de limão (inventário Gaspar Sardinha, 1679).

    As ligas presas nos joelhos, quando não eram pretas ou pardas, tendiam a ter cores vivas também, como, por exemplo, amarelas (inventário de Custódio de Paiva, 1610); de tafetá azul (inventário de Domingos Luís, 1613); verdes de tafetá (inventário de João do Prado, 1615); vermelhas (inventário de Francisco de Seixas, 1615) e de tafetá roxo (inventário de Cristóvão Aguiar Girão, 1616).

    A partir de fins dos Quinhentos, começam ocorrer conjuntos da mesma cor e tecido, em várias combinações, por exemplo: calção e roupeta (1594), roupeta e gibão (1607), capa e roupeta (1623), ferragoulo e roupeta (1623), capa e loba (1652), capa, roupeta e calções (1652), capa, calção e gibão (1680), casaca, capa e calção (1698) e casaca, capa, calção e véstia (1710). A capa e loba mencionadas acima constituíam certamente um solene traje de luto masculino, único exemplar citado nos inventários paulistas (ver glossário).

    Na moda feminina ocorre o mesmo fenômeno: corpinho e gibão (1599 e 1642), saia e gibão (1616), saio e saia (1621), saio, saia e gibão (1623), vasquinha e saio (1633) e anágua e roupa (1650) etc.

    Complementos

    Os trajes de festa dos paulistanos eram complementados com alguns acessórios. No caso das mulheres: jóias, muitas jóias (anéis, gargantilhas de corais e folhas de ouro “a modo de coração”, afogadores de filigrana com seus aljôfares, voltas de alambres (contas de âmbar) e azeviches, arrecadas de várias voltas com seus pendentes de ouro, manilhas (braceletes) de corais e brincos de orelhas, de vários tipos, entre eles os ornados com pequenas alcofas e caçoulas. De acordo com viajantes estrangeiros no século XIX, as brasileiras usavam jóias em excesso, talvez de maneira quase parecida com o que ocorre ainda hoje no traje regional da noiva minhota, cujo colo chega a ficar inteiramente tomado por correntes e colares, de onde pendem crucifixos e corações de filigrana (fig. 64). No caso dos homens, havia as armas brancas.

    A partir do século XVI, na Europa, em razão da crescente intranqüilidade politico-religiosa que caracterizou aquele período histórico, tornou-se aceitável, e até obrigatório, entre a população masculina, o porte de armas brancas. Pelas Ordenações Filipinas (1603), podiam os homens de qualquer qualidade trazer espada, adaga e punhal até a hora de recolher. Depois disso, se fossem achados, pagariam multa e teriam as armas apreendidas (Livro V, Tit. 80, §2). Os oficiais mecânicos e mestres residentes em Lisboa gozavam, porém, de privilégio em relação aos outros homens: podiam andar com espada, adaga e punhal depois do toque da Ave Maria, para ir de casa à tenda e de tenda à casa.

    Assim, nos inventários, são comuns as menções a espadas e adagas, acompanhadas de cintos, talabartes, boldriés ou talins. Os cintos e talabartes eram quase sempre feitos de vaqueta ou cordovão e providos muitas vezes de ferragens de prata (fivelas e ponteiras). As espadas e adagas podiam eventualmente “ser abertas a buril com punhos de prata” (inventário de Mateus Siqueira, 1680). Ou o adereço era composto de “espada e adaga com os cabos abertos a buril e seu talim franjado e rendado” (inventário de Francisco de Cubas Preto, 1673).

    Ocorrem, ademais, nos antigos inventários alguns raros complementos, tais como: bengalas (inventários de Isabel Fernandes, 1599, e de Henrique da Cunha, 1624) e chapéus-de-sol (seis exemplares encontrados em inventários datados entre 1638 e 1710, um dos quais de pintado a óleo e outro feito de barregana; AESB). Quanto a pares de luvas, encontramos apenas três referências: par de luvas (inventário de Domingos Nunes Bicudo, 1650); luva de baeta (inventário do Reverendo Álvaro Neto Bicudo, 1653; AESB;) e luvas enfeitadas (inventário de Antônio Leite Falcão, 1694; AESB). Ainda segundo Alcântara Machado (p. 98), a presença de lenços nos velhos documentos era extremamente escassa: não passavam de 20, distribuídos entre 11 pessoas somente.

    Entre os objetos pertencentes aos inventariados, merecem ser citados ainda alguns pares de óculos, cuidadosamente guardados em caixas feitas de casco de tartaruga (relacionados em oito inventários datados entre 1613 e 1710). Os pares de óculos arrolados seriam provavelmente iguais aos encontrados na costa da Croácia nos restos de um navio veneziano naufragado em 1583, de onde foram resgatadas em 1968 20 pequenas caixas de madeira cheias de óculos fabricados em Nuremberg, com a particularidade de terem armações feitas de couro (<http://www.antiquespectacles.com/topics/discoveries/shipwreck/ shipwreck.htm#>). Um par semelhante a esses era usado pelo escritor espanhol Francisco Gómez de Quevedo (1580-1645) e os exemplares paulistas certamente não diferiam dos modelos usados pelos espanhóis (fig.65). Por fim, para concluir nossas considerações sobre o universo dos trajes masculinos não devemos esquecer do único exemplar de cabeleira postiça citado nos inventários paulistas, encontrado no arrolamento dos bens deixados por Antônio Rodrigues do Prado, datado de 1694. Um tipo de ocorrência que não deixa pôr em dúvida o alto grau de afrancesamento atingido pela indumentária masculina paulista no final do século XVII.

    Por outro lado, como objetos ligados ao mundo feminino, não podemos esquecer de citar os rosários, de tradição portuguesa, mencionados em sete inventários com datas entre 1614 e 1710. Dentre essas peças de caráter devocional, destacam-se um “de corais com extremos e cruz de ouro” (1652), um “de coral fino engranzado [isto é, encadeado] em prata” (1665), outro “engranzado em ouro, os extremos com seus casquilhos [arremates de metal]” (1669) e finalmente um “organizado [engranzado?] em prata com uma verônica [imagem de Cristo]” (1710). Podemos ter uma idéia da aparência desses objetos observando duas ilustrações neste trabalho. Na fig.58 notamos que a velha beata traz um exemplar nas mãos feito justamente de contas de coral, entremeadas com contas de prata. Na fig. 24, podemos ver à direita a acompanhante da magnificente Princesa Isabela Clara Eugênia (1566-1633), filha favorita de Felipe II (1527-1598). Dizem tratar-se de uma anã e louca chamada Madalena Ruiz (séc.XVI-1605), ocupada no quadro em segurar os micos da princesa. Em seu pescoço, à guisa de colar vê-se uma grande peça feita com contas de coral, contas de prata e um graúdo crucifixo deste último material. Na cabeça, a bufona traz uma beatilha de bicos, análoga à da figura anterior.

    Analisando os inventários paulistas, não podemos deixar de reparar nos poucos elementos que complementavam os trajes femininos seiscentistas. Na Espanha do século XVII era de rigor entre as mulheres de alta condição social o uso de luvas, lenços e leques. Os leques semicirculares feitos de lâminas móveis, que podiam abrir e fechar, de origem japonesa, passaram a ser importados por Portugal e usados tanto nesse país, quanto na Espanha desde os fins do século XVI (fig.54 A). Tornaram-se depois universais entre as mulheres das camadas superiores, substituindo os abanos de penas anteriormente introduzidos pelos italianos. Luvas perfumadas com grandes punhos bordados (fig.66), de fabricação espanhola, eram regularmente exportadas para a França. A difusão desses acessórios entre as mulheres de outras camadas sociais foi, porém, relativamente lenta, dependendo do barateamento da confecção das peças. No inicio do século XIX, Debret, por exemplo, surpreenderia índias guaranis já integradas na civilização, trazendo nas mãos o leque pregueado e retrátil escrupulosamente enrolado num lenço branco (v. 1 prancha n.24) (fig.67).


    Conclusão

    Pelo que vimos acima, a indumentária paulistana dos primeiros tempos, vista como pobre e antiquada pelo jesuíta Fernão Cardim, quando visitou Piratininga em 1585, evoluiu bastante ao longo do século XVII. Frei Vicente do Salvador atribuiu o início dessa evolução à chegada do faustoso fidalgo português D, Francisco de Sousa e sua corte em 1599. Mas talvez a razão seja outra, de cunho estrutural, tal como demonstrada por Ilana Blaj: São Paulo no seiscentismo conseguiu sair de uma quase economia de subsistência e passou a integrar a economia de mercado, graças à produção agrícola voltada para abastecimento interno do País (p.95 e ss.). Tal fato possibilitou o enriquecimento de uma elite proprietária de terras e escravos, gerando um excedente em parte gasto nos pequenos luxos exibidos pelos trajes domingueiros. Em São Paulo não havia decerto a despudorada opulência flagrada nas zonas açucareiras, mas os membros das camadas mais altas demonstravam, mesmo assim, séria preocupação com a exteriorização da riqueza e status através das roupas. Luxo que contrastava de modo chocante com a penúria dos interiores dos lares da época, onde se viam poucos talheres na mesa, raros pratos e uma ou outra tambuladeira de prata, por exemplo, enquanto faltavam móveis e mais artigos que seriam hoje considerados essenciais.

    A moda espanhola introduzida em São Paulo, sobretudo depois de 1580, foi finalmente superada na segunda metade do XVII no que se refere ao traje masculino, mas deixou raízes na região, convertendo sobretudo a vestimenta feminina paulista num verdadeiro regionalismo. Até o século XIX as paulistanas mantiveram os mantos negros de sarja e de baeta, os roupões ornados com galões dourados descendentes da ropa espanhola quinhentista e o pequeno chapéu negro de feltro, com o seu respectivo véu. Da mesma maneira, o paulista conservou o poncho (antigo bernéu) e suas botas colantes de couro de veado. Ao longo do Dezenove, as modas se modernizaram, mas as famosas baetas cobrindo as moças pobres perduraram até os anos de 1870, quando o processo de urbanização da cidade se acelerou definitivamente, extinguindo centenárias tradições.


    Arq.Eudes Campos


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    Para citação adote:

    CAMPOS, Eudes. Pequena contribuição para o estudo da indumentária dos primeiros paulistanos. INFORMATIVO ARQUIVO HISTÓRICO DE SÃO PAULO, 5 (27): out.2010. <http://www.arquivohistorico.sp.gov.br>

     
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