PMSP/SMC/DPH
São Paulo, outubro de 2010
Ano 5 N.27 

Abertura | Biblioteca | CCAD | Estudos e Pesquisas | Ns.anteriores

  • ESTUDOS & PESQUISAS
  • Pequena contribuição para o estudo da indumentária dos primeiros paulistanos


    Eudes Campos
    Seção de Estudos e Pesquisas




    | Introdução | Os trajes quinhentistas... | A evolução dos trajes... | Glossário | Fontes |


    Introdução

    Ao longo da primeira metade do século XX, tempo em que a ideologia do bandeirismo grassou forte entre os historiadores paulistas, foram realizados alguns estudos sobre a cultura material da antiga vila de São Paulo, abarcando os séculos XVI e XVII. Pesquisaram-se o mobiliário, os objetos domésticos, as ferramentas, as armas dos velhos piratininganos, mas pouco avanços foram feitos com relação aos estudos da indumentária regional, correspondente ao período considerado. Muitos obstáculos embaraçavam o desenvolvimento desse tipo específico de estudo: a total ausência de exemplares autênticos remanescentes, que pudessem ser examinados; a inexistência de uma iconografia confiável, que retratasse a aparência das vestimentas usadas pelos paulistas dos primeiros tempos; a ocorrência de poucas alusões textuais, em geral, arrolamentos em inventários e testamentos, dificilmente identificáveis em razão dos termos arcaicos empregados; a falta de estudos sérios e aprofundados realizados no âmbito acadêmico das antigas metrópoles, Portugal e Espanha, fontes, como veremos, determinantes, em última instância, das modas usadas no Brasil durante a era colonial.

    Para suprir tal lacuna, artistas como Belmonte (Benedito Carneiro Bastos Barreto, 1896-1947) e José Wasth Rodrigues (1891-1957), por exemplo, recorreram frequentemente a antigas estampas francesas do século XVII, cujas reproduções ilustravam os estudos sobre trajes europeus, bastante divulgados durante a primeira metade do novecentismo. Com efeito, pintores e escultores anteriores aos citados já haviam recorrido às antigas artes figurativas estrangeiras para a recriação artística do passado paulista, alguns dos quais responsáveis pela criação de quadros e esculturas que se vêem hoje no Museu Paulista, obras muitas vezes executadas sob a encomenda do historiador Afonso d’ Escragnolle Taunay (1876-1958), então diretor da instituição (1917-1945): Benedito Calixto (1853-1927), Nicolla Rollo (1889-1970), Adrien Henri Vital van Emelen (1868-1943), Luigi Brizzolara (1868-1937), entre outros. Na verdade, grande era a desinformação sobre a cultura material do passado brasileiro, sobretudo acerca dos trajes dos antigos habitantes da Capitania de São Paulo, mas impunha-se reconstruir os gloriosos tempos bandeiristas por meio de imagens, para torná-los mais verossímeis e assimiláveis às novas gerações de brasileiros (ver a esse respeito MARINS, passim).

    Após uma dramática sucessão de fatos políticos ocorridos a partir da década de 1930, as Revoluções de 1930 e 1932, o Estado Novo (1937), a redemocratização de 1945, o governo civil de Getúlio (1951-1954) e a comemoração do IV Centenário da cidade de São Paulo – sequência que culminou com a trágica morte do antigo ditador em agosto de 54 –, e que alimentou durante todo esse tempo a corrente política paulista contrária ao getulismo e a favor da hegemonia nacional do Estado de São Paulo, outro quadro político se configurou no País. Foi quando novos atores sociais e novas questões políticas emergiram, produzindo uma guinada tanto no curso da história brasileira quanto na sua historiografia.

    O novo contexto político e cultural permitiria que a construção ideológica do bandeirismo fosse finalmente superada e, consequentemente, desmontada. Sobre esse fato, tomemos como exemplo a Casa do Bandeirante, velha construção rural restaurada e mobiliada pela Prefeitura de São Paulo para as comemorações do IV Centenário, e que no final da década de 1970 teve sua decoração interna inteiramente desfeita, diante da constatação de que o museu apresentava um cenário bastante falso, eivado de incongruências e insustentáveis anacronismos: a casa, que parece ter sido erguida na segunda metade do século XVIII (e talvez seja ainda mais recente), fora provida, para a celebração dos 400 anos da cidade, de móveis do denominado período bandeirista, numa tentativa de recriação do espaço doméstico da casa rural seiscentista. No entanto, as peças selecionadas e adquiridas para a casa-museu ao que parece nada tinham de fato de bandeiristas, eram quase todas setecentistas, distribuídas segundo o programa das residências do século XIX, e provenientes em sua maioria do Vale do Paraíba e de Minas Gerais...

    Desde então, poucos historiadores têm-se interessado pelo passado mais remoto da cidade de São Paulo. O revisionismo proposto por alguns autores recentes, no entanto, tem sido estimulante, porque conseguiram traçar um novo quadro do seiscentismo paulista. Se a São Paulo do tempo dos sertanistas vista pela historiografia contemporânea é diferente da vila que os historiadores dos anos 1920 e 1930 concebiam, não há motivos para não tentarmos lançar também um novo olhar sobre a indumentária paulistana daqueles tempos, no intuito de conhecê-la de maneira mais aprofundada.


    O Padre Fernão Cardim e a notícia mais remota
    acerca dos trajes paulistanos

      Vestem-se de burel, e pellotes pardos e azues, de pertinas compridas como antigamente se vestiam. Vão aos domingos à igreja com roupões ou berneos de cacheira sem capa. (CARDIM, p. 173)
    Todos conhecemos a epígrafe acima, com a descrição feita pelo jesuíta português Fernão Cardim (1549-1625) dos trajes dos habitantes de Piratininga quando esteve em visita à vila em 1585. Frase sempre evocada para comprovar a pobreza e o isolamento dos paulistanos, que no século XVI lançavam mão de grosseiros panos de lã (burel) e de algodão, este cultivado e fiado localmente, para a confecção de peças de vestuário consumidas pelo próprio povo da vila. O testemunho de Cardim é sempre citado para comprovar a falta de recursos e o atraso dos piratininganos, mas não nos ocorre que tenha sido esse trecho de Tratados da terra e gente do Brasil algum dia convenientemente dissecado por algum historiador.

    Nenhum estudioso brasileiro que reproduziu essas palavras, ao que parece, se preocupou em decifrar os termos relativos aos trajes dos paulistanos citados pelo aludido padre jesuíta. Em grande parte, provavelmente, sentiam-se desencorajados por não disporem de material que dessem sustentação às suas investigações. Não estavam à mão glossários especializados em termos relativos à indumentária histórica, nem exemplos de iconografia que fornecessem pistas adequadas para a correta interpretação das palavras de Cardim. Tampouco eram facilmente acessíveis estudos sobre antigos trajes ibéricos que fossem detalhados a ponto de serem úteis à pesquisa de um eventual pesquisador brasileiro. As honrosas exceções ao que aqui se descreve são José de Alcântara Machado (1875-1941) e o historiador Ernani Silva Bruno (1912-1986), autores respectivamente de Vida e morte do bandeirante (1929) e de Equipamentos da casa bandeirista segundo os antigos inventários e testamentos (este último, publicação do Departamento do Patrimônio Histórico da Prefeitura de São Paulo de 1977), cujos livros são de leitura obrigatória para quem se interessa pela história da indumentária paulista nos primeiros séculos. De autoria de Silva Bruno existe ainda o inestimável Arquivo Ernani Silva Bruno (aqui chamado AESB) organizado no tempo em que foi diretor do Museu da Casa Brasileira (1970-1979), hoje facilmente acessível em meio eletrônico através do site do museu. Embora ambos tenham desenvolvido pesquisa sobre trajes arrolados em inventários paulistas do século XVI ao XVIII, os seus estudos não seguiram em direção a uma tentativa de identificação das peças que possibilitasse um ensaio de reconstituição visual da indumentária dos antigos paulistas.

    É lastimável que a situação atual ainda não tenha mudado em essência. O grande estudo sobre a indumentária brasileira do passado está ainda por ser escrito, o mesmo ocorrendo com a história do vestuário paulista. Mesmo assim, arriscamo-nos aqui a elaborar um estudo que, longe de ser definitivo, ousa levantar hipóteses acerca dos primeiros trajes paulistanos, hipóteses que deverão ser algum dia verificadas, demonstradas ou simplesmente rejeitadas por quem vier a se interessar pelo assunto.

    O que nos tolhe nesse gênero de investigação é, principalmente, a raridade da documentação iconográfica que registre a indumentária do povo português usada ao longo do século XVI e XVII. As pinturas e as iluminuras lusas, de caráter eminentemente oficinal, estavam na época em mãos de artistas que se expressavam ou num tardio estilo do Gótico nórdico, influenciados pelos pintores flamengos, ou segundo as convenções do Maneirismo romanista (ver, por exemplo: http://pt.wikipedia.org/wiki/Pintura_de_Portugal). Em ambos os casos, ao que tudo indica, tinham muito pouco interesse na reprodução pictórica da realidade local. Serviam à Igreja e à piedade privada, compondo, eminentemente, temas de gênero sacro, e em suas pinturas as figuras humanas representadas apareciam em geral ou cobertas com roupagem à antiga ou com trajes contemporâneos, porém muito estilizados e fantasiosos.

    Diante desse contexto, tivemos de recorrer muitas vezes à historia da antiga indumentária espanhola, servindo-nos das excelentes pinturas de cunho realista, quinhentistas e seiscentistas, produzidas naquele país (em geral pertencentes ao soberbo acervo do Museo Nacional del Prado), cujos artistas foram tão eficazes tanto na documentação dos magníficos trajes de corte do período habsbúrgico, como no registro do rude traje popular – devendo-se dar especial destaque aqui à grandiosa obra do pintor Diego Velázquez (1599-1660). Recorremos também a alguns pouquíssimos exemplares de vestuário sobreviventes, alguns dos quais hoje depositados no recentíssimo Museo del Traje (2004) em Madrid (museodeltraje.mcu.es), que certamente, em determinados casos, são mais próximos da indumentária portuguesa da época (graças ao período em que os dois países ibéricos estiveram politicamente unidos entre 1580 e 1640) do que as vestes representadas pela intensamente difundida iconografia francesa datada do mesmo período, tantas vezes tomada como modelo pelos brasileiros do século XX na reconstrução do passado paulista.

    Na verdade, as informações que conseguimos obter acerca do traje português desde a época dos Descobrimentos até o final do século XVII nos pareceram bem insatisfatórias. Para entender o que Cardim nos diz, foi necessário, por vezes, formular hipóteses com pouco embasamento documental em que nos apoiar.


    Pelote

    No traje de corte de meados do século XVI, o pelote era uma vestimenta masculina que se sobrepunha ao gibão, o qual por sua vez se usava diretamente sobre a camisa, tal como veremos oportunamente, quando comentarmos acerca do traje de corte português.

    O pelote nessa época era uma peça ajustada ao corpo, abotoada na frente, do alto do pescoço até a cintura, e com abas bem curtas. Em geral não tinha mangas, deixando aparentes as da peça de baixo (gibão); o alto das cavas era quase sempre rematado com aletas.

    De acordo com o texto do escritor português Francisco de Morais Cabral (depois de 1512-1572/76), intitulado Monólogo apaixonado do moço da Ribeira, sabe-se que o pelote português do século XVI podia ter mangas, as quais, ao que parece, no caso do exemplar envergado pelo jovem citado no título do monólogo, seriam perdidas, pois ele se embuçava com uma delas para passar despercebido aos circunstantes enquanto fazia a corte à jovem de seus amores (<http://trajes.no.sapo.pt/Documento12.htm>). Há referências documentais de que, naquele tempo, essa peça poderia ter ainda meias mangas ou até largas mangas golpeadas (<http://trajes.no.sapo.pt/TextoVestuarioNobreza.secXV.XVI.htm>).

    Alguns pesquisadores afirmam que o pelote ia até o nível dos joelhos, mas a identificação da peça que fazem em imagens deixa a desejar. Os exemplos mostrados têm forma muito heterogênea e se referem por vezes a peças nitidamente distintas, como a samarra, por exemplo, que não pode, a nosso ver, ser confundida com qualquer outra peça de roupa exterior daquela época, dadas suas características muito bem definidas (<http://trajes.no.sapo.pt/PelotesMasculinos.secXV.XVI.htm>). Por outro lado, sabe-se que em Portugal, em 1539, os estudantes de Coimbra tiveram seus trajes regulamentados. Muitos enfeites lhes foram então negados; os barretes deveriam ser redondos, as capas sem capelo e os pelotes mantidos pouco abaixo dos joelhos (<http://trajes.no.sapo.pt/LegislacaoVestuario.secXV.XVI.htm>).

    Vemos assim que o pelote quinhentista português era uma peça exterior de forma não muito definida, ou antes, que sofreu evolução de forma ao longo daquele século (fig.20) . No entanto, dada a composição social que a população paulistana apresentava nos primeiros anos, somos de opinião que o pelote visto por Cardim não poderia ter as características acima descritas, próprias da peça usada pelas camadas mais altas da sociedade portuguesa de então. O pelote a que se refere Cardim teria de ser necessariamente uma peça pertencente ao vestuário popular.

    Foi numa rara pintura portuguesa de meados do século XVI, de autoria anônima, denominada Chafariz D’El-Rey, e analisada adiante, que encontramos aquilo que seria a versão popular do pelote português. Perscrutando os trajes usados pelos homens do povo representados nessa tela, identificamos o pelote com uma vestidura que se punha sobre o gibão. De mangas compridas e de algum modo fechada à frente, o pelote era cinturado e suas abas longas cobriam, naquela altura cerca de dois terços das coxas (fig.9).

    Longa é a especulação que faz Rafael Bluteau (1630-1734) no seu Vocabulario Portuguez e Latino ... (1712-1728) a respeito do pellôte, peça de vestuário que em seu tempo já havia sido esquecida. Segundo ele, tratava-se de uma rústica vestidura de pano grosso com mangas e abas grandes, que podia ser forrada de pele, sendo essa a razão de seu nome (de acordo com Bluteau, podia ser feita também com pano de pelos compridos). Apresenta uma abonação que diz que certo pelote era feito com o rude pano da serra (ver glossário no final deste trabalho).Mas admite afinal que teria havido também pelotes confeccionados com pano fino.

    Por outro lado, a definição de pellóte encontrada em Antônio de Morais Silva (1755-1824) no seu Diccionario da língua portuguesa (1789), aqui identificado como Morais/Bluteau, indica que era peça habitualmente usada por baixo da capa. Mas havia quem o usasse sem capa, o que era passível de punição se tal acontecesse na corte, é pelo menos o que se depreende de uma abonação introduzida na edição de Morais datada de 1813.


    Pertina, ou antes petrina

    Durante muito tempo procuramos saber o que significava pertina. Nunca encontramos referência alguma a essa peça. Recentemente, porém, ocorreu-nos uma luz. E se o termo estivesse grafado errado, fruto de erro de impressão perenizado nas sucessivas edições do texto cardiniano, por desconhecimento geral dos revisores acerca do que o autor falava? Pertina poderia muito bem ser originalmente petrina, resultando o equivoco da simples anteposição da letra erre. Aliás o Novo Diccionario da Lingua Portugueza (1806) também traz consignada a forma pretina, por petrina, o que em nosso entender só confirma a interpretação de que pertina – seja produto de um erro tipográfico seja forma lingüística variante –, nada mais era do que um tipo de cinto.

    Com efeito, conforme nos diz o Novo Diccionario... de 1806, petrina era o nome de um cinto afivelado, “com que antigamente se cingiaõ por cima do vestido”. Esse acessório, de acordo com o jesuíta Cardim, estaria sendo usado de modo antiquado pelos paulistanos, pois traziam-nos compridos. De fato, havia sido moda muitas e muitas décadas antes, ainda no século XV, portarem os europeus ricos, estreitos e longos cintos com os quais cingiam as roupas exteriores de então, por vezes constituídas de volumosas hopalandas. Para estar na moda, a ponta solta do cinto deveria ficar pendente e balouçante. A fim de não estorvar, os paulistanos poderiam fazer como muitos europeus dos Quatrocentos: logo depois da fivela, davam-lhe um laço ou nó em torno da parte que cingia a cintura, de modo a fazer com que a extremidade solta ficasse em posição perpendicular, com a ponta voltada para baixo (fig.1), tal como aparece hoje na liga, ou jarreteira, em forma de cinta que é o tradicional símbolo emblemático da Order of the Garter inglesa (fig.2).

    Encontramos essa mesma maneira tida como elegante de usar o cinto em figuras representadas pelo pintor italiano renascentista Piero della Francesca (1416-1492). A moda da nobreza parece ter-se popularizado no tempo desse pintor, que retratou jovens, em plena batalha, com cintos de ponta pendente cingindo estreitamente a cintura de seus farsetti (fig.3).


    Roupão de cacheira

    Tal como o robone italiano, o roupão português era uma vestimenta masculina exterior, que se punha por cima das outras peças de vestuário. Larga e comprida, quando usada pelas camadas superiores, tinha aspecto suntuoso, com linhas rígidas e amplificadoras. Aberto na frente, costumava ser forrado de tecido grosso ou peles, possuindo amplas mangas, por vezes, com aberturas na altura do cotovelo, por onde passavam os antebraços, sendo habitualmente usado por pessoas de idade ou de maior distinção social ou acadêmica.

    Certamente no caso paulistano, deveremos vê-lo com aparência bem menos faustosa. Feito de cacheira, um tipo de lã felpuda, segundo o Novo Diccionario da Lingua Portugueza (1806), deveria lembrar assim a versão em moda na Europa durante a segunda metade do século XV, comprida até o pé (ou até o artelho, como então se dizia) ou na altura da metade da tíbia, mas de formas pouco encorpadas e, sobretudo, de tecido liso sem nenhum enfeite (fig. 11C).


    Bernéu de cacheira

    Bernéu (ou bérnio, segundo os dicionários Aurélio e Houaiss) era uma peça de vestuário exterior; modalidade de capa comprida e grosseira, segundo o Novo Diccionario da Língua Portugueza (1806). A respeito dessa peça conta-nos François Boucher, insigne historiador francês da indumentária ocidental (Histoire du costume en Occident de l’Antiquité à nos jours, 1965), que, originalmente, berne ou sbernia era um tecido grosseiro feito na Irlanda (Hibernia), de que se faziam agasalhos para soldados (p.426). Ou seja, o bernéu era uma peça semelhante a uma capa, de formato provavelmente retangular, com uma abertura central para passar a cabeça, pois quando aberta e estendida, era usada numa rude brincadeira de soldados, que lançavam um companheiro ao ar, fazendo-o saltar sobre o bernéu, estendido e sustentado por quatro homens.

    Segundo o dicionário Aurélio, o pano de que era feito o bérnio era de cor vermelha, o que é confirmado pelo Novo Diccionario da Lingua Portugueza (1806), e servia para a confecção de resposteiros e balandraus. Houaiss, por seu turno, acrescenta que com esse pano se faziam ainda cobertas de cama.

    Assim, bernéu de cacheira talvez tivesse alguma semelhança com o antigo balandrau, só que mais comprido do que este último. Na Espanha do século XIII, balandrán era uma capa curta, retangular, fechada frontalmente, com capuz. As laterais eram abertas para saírem os braços. Seu comprimento ia até os quadris. Uma peça de vestuário, enfim, típica de camponeses. De fato, lembrava um poncho curto com capuz. O historiador espanhol Gonzalo Menédez Pindal (La Espanã del siglo XIII: leída em imagenes) fala sobre essa peça, em uso na Espanha duocentesca. Na ilustração da capa de seu livro pode-se, aliás, identificá-la facilmente (fig.4) (ver também p.72).

    O bernéu citado pelo jesuíta Cardim seria decerto um tipo de balandrau, feito com lã espessa e peluda chamada cacheira, tecido talvez próximo em qualidade à lã irlandesa (fig. 11C).

    Ao se referir ao traje paulistano de 1585 Cardim fez questão de declarar que os habitantes de São Paulo iam à missa sem capa. Numa época em que a missa de domingo se constituía num dos momentos mais importantes da vida social da vila em formação, quando os moradores vinham de longe para ouvi-la na igreja dos jesuítas, envergando suas melhores roupas, o inacino deixou subentendido que os portugueses de Piratininga não passavam de pessoas pobres e rústicas, pois para se paramentar em ocasiões especiais só dispunham de peças de vestuário de origem camponesa ou militar, desconhecendo o uso socialmente aceito da capa.

    Essa situação seria confirmada mais tarde (1627), quando, a respeito dos paulistas, diria Frei Vicente do Salvador (1564-1635) em sua História do Brasil:
      Até então [até a chegada de D. Francisco de Sousa a São Paulo em 1599] os homens e mulheres se vestiam de algodão tinto e se havia alguma capa de baeta e manto de sarge, se emprestavam aos noivos e noivas para irem à porta da igreja [se casar].(SALVADOR, p. 163. )
    O que se extrai das palavras acima é que tanto o Padre Fernão Cardim quanto o Frei Vicente do Salvador consideravam a capa como a única peça exterior masculina apropriada para ser envergada tanto em missas quanto em cerimônias de casamento, veste exterior de uso citadino por excelência, indispensável no guarda-roupa das pessoas bem-postas. Essa conclusão nos remete diretamente ao que se expôs atrás, em relação ao termo pelote, tal como definido por Bluteau, dicionarista que oferece como abonação trecho que nos faz subentender que não se podia freqüentar a corte portuguesa sem estar devidamente vestido de capa.


    Raro exemplar de arte portuguesa, a tela denominada Chafariz d'El Rey (1570-1580)


    A única pintura portuguesa que, de acordo com o nosso conhecimento, nos mostra objetivamente trajes populares em uso na Lisboa em meados do século XVI, constituindo-se por isso numa relevantíssima fonte documental iconográfica, é a tela denominada Chafariz d’El Rey (fig.5). De autoria anônima e atribuída a artista de origem flamenga, a obra pertence hoje à coleção de José Manuel Rodrigues Berardo (1944- ), bilionário madeirense mais conhecido como Joe Berardo.

    Obra de intenso realismo ingênuo, o quadro fornece-nos uma infinidade de preciosas informações sobre diferentes aspectos da Lisboa quinhentista, na região do Cais de Santarém. O que mais chama a atenção dos pesquisadores portugueses é, sem dúvida, a aparência da notável fonte medieval depois das obras feitas ao tempo de D. Manuel I, fonte ainda hoje existente embora sob forma totalmente diversa.

    Para nós é particularmente comovente observar o populacho lisboeta, com o qual se misturavam então muitos escravos negros trazidos da África. Uma multidão desordenada, maciçamente constituída de homens e escravas, invadia o recinto do chafariz, provocando decerto grande vozerio e alvoroço.

    No quadro, é rara a presença de mulheres de condição livre. Nas janelas altas das casas, à distância segura da arraia miúda que inundava o espaço público, surpreendemos algumas damas com trajes de influência talvez francesa, dedução feita a partir do tipo de decote e toucado que usavam. Impressão que sai reforçada, quando observamos a senhora com traje parecido que é objeto da atenção de um rapaz, ambos ocupando um bote que flutua ao sabor das ondas do estuário, em primeiro plano.

    Se a moda do elemento feminino pertencente às camadas superiores traía naquela altura a influência francesa, a indumentária masculina dessas mesmas camadas parecia estar já sob o influxo direto dos trajes espanhóis. Os homens de capa e espada que desfilavam ao longo do cais vestiam-se todos de negro, cor que se tornara quase universal durante aquele período na Europa ocidental.

    As escravas, contudo, trajavam-se como as mulheres brancas mais humildes do povo (fig.6). Portando roupas parecidas, peixeiras portuguesas estariam, no inicio do século XVIII, atendendo em barracas no Mercado da Ribeira Velha em Lisboa, conforme painel de azulejos hoje exposto no Museu da Cidade (www.museudacidade.pt), numa época em que, aparentemente, as escravas negras já não eram assim tão numerosas em Portugal (fig.7 A). Na pintura ora analisada, as cativas trazem vestidos pardos, inteiriços, com a saia arregaçada na frente para facilitar os movimentos, deixando à mostra uma saia ou vestido interior cuja fímbria não atingia os tornozelos. Calçavam grosseiros sapatos camponeses que subiam até os tornozelos e envolviam a cabeça em panos brancos, as chamadas toalhas de toucar citadas nos inventários paulistas, hábito herdado da mulher medieval, ciosamente conservado pelas portuguesas e espanholas das camadas inferiores. Uma figura de mulher desse mesmo tipo aparece no fundo de um quadro do pintor espanhol Diego Velásquez (1599-1660), datado do inicio do século XVII (Cristo em casa de Marta e Maria, 1618), confirmando a universalidade, no mundo ibérico, desse modo de vestir próprio da mulher de baixa condição social. A única diferença que se nota era que o vestido do século XVII havia sofrido uma modificação de ordem estética, tendo suas formas, antes ajustadas, passado por um processo de amplificação (fig.7 B).

    Quanto aos escravos, vestiam-se do mesmo modo que os rudes homens da plebe, os chamados peões, ralé infeliz sempre ameaçada e humilhada pelas Ordenações Reais portuguesas. Traziam o gibão (ou jubão) diretamente sobre a camisa (gibão segundo parece guarnecido com mangas avulsas de outra cor), antiquadas calças feitas de tecido, muito ajustadas às pernas, presas por atilhos na borda inferior dos gibões, e em geral sem pés, presas por meio de cabrestilhos (alças, fixadas nas bocas das pernas das calças, que se enfiavam nos pés, deixando–os descobertos), braguilhas salientes, e borzeguins ou, no caso, botas moles até os joelhos, além de carapuça e chapéu na cabeça (fig.8). Outros punham sobre o gibão uma veste exterior que ia até um palmo do joelho (que era, sem dúvida, a versão popular do pelote) (fig.9). Um dos escravos vistos na pintura usava roupa mais sumária, semelhante a dos cativos brasileiros. Ceroulas largas, pernas e pés desnudos e dorso coberto por camisa, cujas mangas estavam enroladas até os cotovelos. O rosto, ao que parece, vinha escondido por uma máscara de lata, provavelmente para que perdesse o mau hábito de ingerir terra (fig.10).

    As cores dos trajes humildes eram sempre pardacentas ou acinzentadas, cores da lã e do linho sem tintura ou tingidos com corantes sem qualidade. Só os trajes dos ricos eram coloridos, às vezes exageradamente, por meio de pigmentos caros. Por influência da moda espanhola, a cor negra começava a predominar nos trajes das camadas superiores, algo que ia se prolongar até além da Restauração (1640), quando a Corte portuguesa independente da Espanha passaria a adotar a moda masculina francesa.







    | Introdução | Os trajes quinhentistas... | A evolução dos trajes... | Glossário | Fontes |




    Para citação adote:

    CAMPOS, Eudes. Pequena contribuição para o estudo da indumentária dos primeiros paulistanos. INFORMATIVO ARQUIVO HISTÓRICO DE SÃO PAULO, 5 (27): out.2010. <http://www.arquivohistorico.sp.gov.br>

     
    EXPEDIENTE

    coordenação
    Liliane Schrank Lehmann

    edição de texto
    Eudes Campos

    webdesigner
    Ricardo Mendes

    distribuição
    Maria Sampaio Bonafé (coordenação)
    Elisabete De Lucca


    Normas Editoriais
    (2007) (formato PDF)

     
    Para receber o Informativo Arquivo Histórico de São Paulo
    - ou suspender a remessa -,
    envie um e-mail para:
    informativoarquivohistorico@prefeitura.sp.gov.br
     




    Prefeitura da Cidade de São Paulo - 2005-2010 (c)



    DPH


    SECRETARIA DE CULTURA


    Cidade de São Paulo


    Gilberto Kassab
    Prefeito da Cidade de São Paulo

    Carlos Augusto Calil
    Secretário de Cultura

    José Roberto Neffa Sadek
    Secretário Adjunto

    Paulo Rodrigues
    Chefe de Gabinete

    Walter Pires
    Departamento do Patrimônio Histórico

    Liliane Schrank Lehmann
    Divisão do Arquivo Histórico de São Paulo
    Informativo AHSP