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PMSP/SMC/DPH
São Paulo, maio/junho de 2009
Ano 4 N.24  

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  • LOGRADOUROS

  • O antigo Beco da Lapa e o Grande Hotel


    Beco da Lapa

    De acordo com as nossas especulações sobre os antigos caminhos paulistanos, expostas em estudo publicado na Revista do Arquivo Municipal, RAM n. 204, a trilha indígena que provinha da região sul (Jeribatiba) e se dirigia para nor-noroeste, em direção à mítica aldeia de Piratininga, ao se aproximar da recém-fundada vila de São Paulo, percorreria o traçado de algumas vias públicas atuais da área central, entre as quais a Rua Álvares Penteado.

    Seguindo em frente a partir desse ponto, a trilha atingiria o leito do chamado Ribeirão Anhangabaú de Baixo de modo oblíquo, fazendo a transposição desse curso d’água por meio de um precário pontilhão, mais tarde designado Ponte do Caminho da Luz ou do Acu. Alíás, nunca é demais lembrar que durante longos 184 anos foi esse o único caminho a fazer a ligação entre São Paulo e a região norte do planalto, após o primitivo caminho do Guaré, hoje representado pela Rua Florêncio de Abreu, ter sido fechado pelos monges beneditinos entre os anos de 1600 e 1784.

    Uma vez transposta a pontezinha do Acu, os viandantes que desejassem se aventurar pelas bandas da velha Piratininga teriam de continuar a marcha em direção nor-noroeste, fazendo o percurso das atuais Ruas do Seminário e General Couto de Magalhães (antiga Rua do Bom Retiro). Indo sempre em frente, atingiriam a várzea esquerda do Rio Anhembi, hoje Tietê, na altura da paragem que desde remotos tempos pré-cabralinos se teria chamado Piratininga, toponímia que, supomos, só nos tempos da ocupação portuguesa veio a ser atribuída a todo o campo planaltino.

    Mais tarde, nos meados do século XVII, o trecho desse caminho correspondente à Rua Álvares Penteado – conhecida na centúria seguinte como Rua da Quitanda, e depois como Rua do Comércio –, seria interrompido pelo traçado da Rua São Bento, aberta ao que parece pelos anos de 1630, quando um piloto conhecedor do rumo da agulha, ou seja, um marujo arvorado em topógrafo por conhecer o uso da bússola, de nome Pero Rodrigues (Roiz) Guerreiro, foi contratado para assumir a função de arruador da Câmara Municipal.

    A partir de então, é possível que os viandantes que se encaminhassem para a Luz e para a região além-Tietê tenham adotado o expediente de entrar na via recém-aberta de São Bento e, em seguida, dobrando à esquerda, irem em direção ao Vale do Anhangabaú, ao longo do qual haveria uma trilha orientada para a pontezinha do Acu, ponto considerado então como o início do Caminho da Luz. Trilha que desapareceria mais tarde, ao ser aberta a atual Rua Líbero Badaró (antiga Rua Nova de São José), por decisão tomada pela Câmara de São Paulo em 1787.

    Deduz-se, portanto, que, uma vez na Rua São Bento, os viandantes seis e setecentistas que seguissem para o norte, deviriam tomar uma picada transversal a partir de um canto em que, por volta de meados dos Setecentos, foi entronizada uma imagem de Nossa Senhora da Lapa, exposta num nicho externo à devoção dos paulistanos. O atalho que saia dessa esquina foi arruado conjuntamente com a Rua de São José, em 1787, tendo recebido o nome informal de Beco da Lapa.

    Essa maneira tortuosa de ir à Luz e à Santana foi depois substituída por um trajeto mais cômodo (Fig.1). Os que vinham do litoral passaram então a entrar na cidade pela Rua de São Gonçalo (lado esquerdo da Praça da Sé) e não pela Rua Quintino Bocaiúva (antiga Rua da Cruz Preta), com faziam antes. Se quisessem prosseguir para o norte, tomariam então a Rua Direita, a Rua Nova de São José (atual Líbero) e um pequeno trecho da Ladeira de São João (início da atual avenida desse nome), onde foi construída a primeira ponte de cantaria da cidade sobre o Anhangabaú, em fins do Dezoito. Chamada Ponte do Marechal, essa construção fora executada durante a administração do capitão-general Marechal Frei José Raimundo Chichorro da Gama Lobo (1786-1788), sendo por sua vez substituída no princípio do século eguinte pela bela construção de pedra de autoria do engenheiro militar Daniel Pedro Müller (c.1785-1841), destruída na inundação de 1850.

    Planta da Cidade de São Paulo, Rufino Costa, 1807/1810
    Fig.1-Pormenor da Planta da Cidade de São Paulo
    levantada pelo engenheiro militar
    Rufino José Felizardo da Costa, datada de 1807/1810.
    Para melhor orientação observe na parte inferior o vale do Anhangabaú.
    Reprodução das plantas históricas publicadas durante o IV Centenário.


    Sobre ela foram traçados os seguintes percursos:
    • em vermelho, o da antiga trilha que ligaria a aldeia de Jeribatiba, ao sul, à Piratininga a nor-noroeste;
    • em azul claro, o desvio a ser feito por aqueles que se dirigiam para o norte, depois de aberta a Rua São Bento por volta de 1636;
    • em azul escuro, o percurso feito por aqueles que, vindos do litoral, quisessem se dirigir para o norte, passando pela Ponte do Marechal, construída entre 1786-1788, depois substituída pela ponte de mesmo nome projetada em 1809 por Daniel Pedro Müller (que é a representada na planta).
    Fonte: Informativo AHM. São Paulo, AHMWL, n.20, set./out. 2008.
    Disponível em: <http://www.arquivohistorico.sp.gov.br>


    Havendo perdido a função de saída da cidade no final dos Setecentos, o estreito Beco da Lapa só recuperaria sua notoriedade ao ser erguido o famoso Grande Hotel em lote de esquina situado entre a Rua São Bento e o citado beco, num ponto então considerado altamente concorrido e central.


    Travessa do Grande Hotel

    Na segunda metade dos anos de 1870, a cidade de São Paulo principiava a vicejar sob o influxo da cada vez mais pujante economia do café. As estradas de ferro que ligavam o interior paulista ao porto de Santos já funcionavam normalmente, estando seus ramais em constante expansão, e a via férrea que poria em contato a capital paulista com a Corte do Rio de Janeiro já se achava em construção, havendo sido inaugurada em 1877.

    Na verdade, a São Paulo desse tempo estava a ampliar tanto seus horizontes econômicos, quanto físicos, sociais e culturais. Construíam-se as primeiras indústrias paulistanas a vapor, o comércio se expandia e o patrimônio edificado da cidade começava a ser renovado com a substituição das velhas construções de taipa pelos sobrados novos de tijolos. A Capital recebia então os primeiros imigrantes italianos e a escravidão decrescia a olhos vistos, pois o grosso dos escravos se concentrava agora nas distantes fazendas de café. Enquanto isso, os ricos fazendeiros começavam a passar longas e periódicas temporadas na cidade para tratar de seus negócios e também para espairecer, indo ao Teatro São José ou frequentando o recém-reformado Jardim Público da Luz; afinal, a Capital constituía-se no novo centro financeiro da Província e o governo da província a partir do presidente João Teodoro (1872-1875) tentava conferir uma expressão mais urbana e amável à vida citadina paulistana.

    Foi então que Frederico Glette (?-1886), um comerciante teuto-suíço radicado na Corte, associou-se a um alsaciano de origem judaica estabelecido em São Paulo, o negociante de fazendas Vítor Nothmann (?-1905), para juntos construírem aquele que seria o mais moderno e luxuoso hotel do Pais, inaugurado no dia 1.º de julho de 1878. O faro para os grandes empreendimentos era uma das características mais notáveis desses empresários estrangeiros que, ao mesmo tempo que lucravam com suas iniciativas de natureza capitalista, iam introduzindo, aos poucos, o sedutor modo de vida europeu no até então acanhado meio paulistano.

    Para se responsabilizar pelo projeto e construção do Grande Hotel, foi escolhido um engenheiro de nacionalidade alemã chamado Hermann von Puttkammer (1842-1917). Conforme as informações de familiares obtidas no já recuado ano de 1993, Puttkammer fora um estudante de escola militar, tendo vindo para o Brasil fugido de seu país por razões mal esclarecidas. Consta que Puttkammer apresentava marcas pelo corpo, motivadas talvez “por algum castigo recebido por ter tomado parte num levante de estudantes”. Pelo que afirma Sérgio Coelho num artigo escrito para O Estado de São Paulo, conservado no arquivo do Instituto Martius-Staden, Puttkammer chegou aqui em 1865 acompanhando um amigo seu, Luís Mateus Maylasky (1838-1906), depois Visconde de Sapucaí (título nobiliárquico concedido por monarca português). Húngaro de origem judaica, Maylasky, por sua vez, imigrou quase banido “após bater-se em duelo fatal”, o que nos faz supor que ambos tenham deixado a Europa por uma razão comum.

    Por terem sido recomendados ao superior da Ordem de São Bento, dirigiram-se à Sorocaba, cidade onde esse monge residia. Originário de uma antiga família aristocrática pomerana, detentora de título de barão, Puttkammer era primo por afinidade do Príncipe de Bismarck (uma prima sua, Johanna, irmã do homem de estado Robert von Puttkammer, era esposa do chanceler alemão). De acordo com sua neta, D. Helena Xavier, falava sete línguas, entre elas russo, inglês e francês. Trouxe com ele para o Brasil quatro filhos do seu primeiro casamento, de três dos quais conhecemos o nome: Carlos, Luís e Jorge. Aqui casou-se novamente com Agnes, de Berlim, que lhe deu mais dois filhos, um dos quais, Wolfgang, pai de D. Helena. Na verdade, os filhos do primeiro casamento não se davam com os meios-irmãos, pois “tinham o nariz empinado”, contou-nos D. Helena.

    Da vida profissional de Puttkammer, pouco se sabe. Em 1876, abriu na capital paulista um escritório “polimático”, onde, a crer no qualificativo que acompanhava a palavra escritório, enfrentava todo e qualquer tipo de trabalho ligado à Engenharia, em seus diversos ramos. Depois, em 1878, montou com o engenheiro-arquiteto D.C. Bianchi um escritório “arquitetônico”, passando assim a se especializar em projeto e construção de edifícios de toda a espécie: residenciais, comerciais, de escritórios, religiosos, etc., conforme anúncio publicado no Correio Paulistano de 10 de abril de 1878. Com seu amigo Maylaski, construiu a estrada de ferro Sorocabana (1870-1875); para o mencionado Glette projetou o Grande Hotel (1876-1878), com o seu sócio Carlos Arno-Gierth; para o mesmo cliente suíço arruou o bairro de Campos Elísios (1879); pertenceu ao corpo técnico da ferrovia Rio-Clarense e finalizou a construção do palacete de Elias Chaves (1893-1899), projetado por Mateus Häussler nos Campos Elísios, falecendo em Ribeirão Preto em 1917.

    Dessa importante edificação hoteleira de três pavimentos erguida na Rua São Bento que era o Grande Hotel, não se conservou nenhuma foto com o aspecto da fachada principal. A rua era – e ainda é – muito apertada, não permitindo a tomada de fotos com suficiente angulação para enquadrar convenientemente as frontarias dos edifícios nela localizados (Fig.2). Em certa ocasião, Yan (João Fernando) de Almeida Prado (1898-1987) definiu a fachada lateral dando para o antigo Beco da Lapa, desde a inauguração do estabelecimento denominado Travessa do Grande Hotel, como sendo “um Vitruvio”, definição que não deixa de ser um tanto exagerada, pois de fato o estilo adotado na edificação deve ser hoje considerado como neorrenascentista e não como neoclássico. Mas por uma ilustração encontrada num anúncio do hotel, publicado num almanaque paulistano de 1896, nota-se que o frontispício possuía à altura do primeiro andar um balcão de alvenaria bastante sacado, a abranger os três vãos centrais, e isso muito contribuía para a criação de um contraponto formal entre a fachada principal, mais ostentosa, e a sobriedade exibida pela elevação lateral.

    planta da cidade de São Paulo, executada pela Companhia Cantareira e Esgotos, 1881
    Fig.2- Pormenor da planta da cidade de São Paulo, executada pela Companhia Cantareira e Esgotos em 1881.
    Reprodução das plantas históricas publicadas
    durante o IV Centenário.

    No centro do detalhe, projeção horizontal do Grande Hotel
    (1876-1878), construído na esquina da Rua São Bento com a agora chamada Travessa do Grande Hotel.

    Fonte: Informativo AHM. São Paulo, AHMWL, n.20, set./out. 2008.
    Disponível em: <http://www.arquivohistorico.sp.gov.br>


    O frontispício do hotel compunha-se de três corpos (Fig.3). No térreo rusticado havia três portas centrais e duas em cada corpo lateral. Todos esses vãos estavam providos de arcos de pleno cimbre. No piso seguinte, onde se faziam presentes pilastras de ordem coríntia, mantinham-se as três aberturas centrais, enquanto um só vão guarnecia cada um dos corpos laterais. As janelas rasgadas do corpo central, no nível desse andar, eram adinteladas, sendo coroadas com frontões triangulares sustentados por mísulas, e as localizadas nos corpos secundários, correspondentes a esse mesmo pavimento, apresentavam-se emolduradas por um arranjo até então nunca visto na cidade: sob o peitoril, um falso balcão com balaústres modelados em meia figura dava sustentação a duas meias-colunas jônicas, que além de enquadrar o vão suportavam um arco pleno. No andar superior, três janelas singelas completavam a composição da parte central da fachada, ao mesmo tempo que uma única janela rasgada, de verga reta, comparecia em cada um dos corpos secundários. Acima da linha da cimalha, bem saliente e pesada, conforme antigas fotos da Rua São Bento em que se pode distingui-las ao longe, viam-se volumosas platibandas, em forma de balaustradas, elementos que acentuavam os topos dos corpos laterais da construção.

    Fachada principal do Grande Hotel, reconstituição, 2009
    Fig.3-Fachada principal do Grande Hotel (1876-1878).
    Reconstituição gráfica aproximada executada com técnica digital.

    Autoria: arq. Eudes Campos, 2009.


    A extensa fachada que deitava para o velho beco, ao contrário, exibia aspecto bem mais sereno, conquanto organizada com quase todos os elementos arquitetônicos existentes na face principal; devendo-se notar apenas que as janelas existentes na parte central da fachada secundária, no nível das portas da Rua São Bento, possuíam arcos de pleno cimbre ornamentados com vistosas arquivoltas, sucedendo-se numa série de treze vãos (Fig.4). Embora o edifício, tão admirado ao tempo de sua construção, não dispusesse de grandes dimensões, emanava dele – e sobretudo da longa fachada voltada para a ruela, com suas quinze janelas e elevado embasamento –, uma monumentalidade digna de velho palácio italiano, a que, aliás, chegou a ser comparado certa vez pelo próprio Yan. É lamentável que fachada tão grandiosa, até então única na cidade, não pudesse ser devidamente apreciada em toda a sua extensão, dado o fato de a agora chamada travessa ser bastante exígua, além de pouco frequentada (tendo servido, provavelmente, na época, quase como uma entrada de serviço exclusiva para o hotel).

    Fachada lateral do Grande Hotel, reconstituição, 2009
    Fig.4-Fachada lateral do Grande Hotel (1876-1878),
    observando-se à direita o anexo construído no início do século XX.

    Notar, na parte original da construção, a entrada de serviço
    inserida na longa sequência de janelas.
    Reconstituição gráfica aproximada executada com técnica digital.

    Autoria: arq. Eudes Campos, 2009.


    Nos primeiros anos dos Novecentos (ao que tudo indica entre 1906 e 1912), a sede do Grande Hotel sofreu um acréscimo no fundo do lote, onde havia uma testada dando para a Rua Líbero Badaró. As historiadoras italianas Anita Salmoni e Emma Debenedetti (Arquitetura italiana em São Paulo) enganaram-se ao afirmar que essa outra fachada havia sido refeita em 1894 pelos arquitetos Luigi Pucci (1853-?) e Giulio Micheli. O pedido de alinhamento em questão (Obras Particulares-Papéis Avulsos, V.E-2-49, e não E-2-50 como afirmaram elas), referia-se decerto à reconstrução, tão-somente, de um muro de fecho que existia para o lado da Rua Líbero.

    Numa foto datada por volta de 1906, reproduzida na publicação Melhoramentos da Capital 1911-1913, ainda não se vê o anexo construído na parte de trás do Grande Hotel (TOLEDO, Anhangabahú, 1989, p.69). Conseguimos proceder à datação dessa imagem a partir da presença à esquerda, no fundo, da Casa Martinico, que já aparece praticamente concluída, tendo sido erguido esse prédio nas proximidades do lugar antes ocupado pela Igreja do Rosário, demolida em 1904 (Fig.5). Se o ano de 1906 deve ser considerado o terminus post quem para a construção do anexo, o ano de 1912 deve ser visto como o terminus ante quem dessa edificação, pois numa outra foto, anterior ao alargamento da Rua Líbero Badaró ocorrido a partir dessa data, já é possível identificar a frontaria do acréscimo do Grande Hotel deitando para a mencionada via pública (Fig.6) (Id., p.75. fig. n. 60).

    Anhangabaú, 1906 Fig.5-Vista do Vale do Anhangabaú, tomada do Teatro Municipal. No fundo da foto, à esquerda, vê-se o prédio da Casa Martinico praticamente pronto, o que indica que a imagem é de 1906. Dentro do circulo vermelho, vê-se a fachada posterior do bloco original do Grande Hotel, com uma só janela em cada andar, o que prova que o anexo só foi erguido depois dessa data. Fotógrafo não identificado.

    Fonte: TOLEDO, Benedito. Anhangabahú. São Paulo: FIESP. 1989.


    Anhangabaú, 1912 Fig.6-Vista do Vale do Anhangabaú, antes do início das demolições da Rua Líbero Badaró ocorridas a partir de 1912. Notar dentro do pequeno círculo vermelho a fachada do anexo, com suas três aberturas em cada piso, dando para a Rua Líbero Badaró. Fotógrafo não identificado.

    Veja detalhe abaixo.

    Fonte: TOLEDO, Benedito. Anhangabahú. São Paulo: FIESP. 1989.


    Anhangabaú, 1912

    Em que pese ter sido organizada com o mesmo repertório formal empregado no resto da construção, a fachada voltada para a Rua Líbero Badaró, além de tardia, tinha uma aparência que pouco se coadunava com as demais elevações. Sua testada apresentava pouca extensão, só havendo espaço para três vãos em cada andar; além disso, em virtude do forte declive do terreno, o embasamento existente na Travessa do Grande Hotel se transformava em térreo na parte voltada para a Líbero. E havia mais uma diferença: estava o anexo desprovido do último andar visível na parte que olhava para a Rua São Bento. Na verdade, o resultado formal da fachada situada na Rua Líbero era bastante modesto, não permitindo ao observador fazer a menor ideia da grandiosidade que caracterizava o bloco principal do estabelecimento hoteleiro (Fig.7).

    Grande Hotel, fachada posterior Fig.7-Fachada posterior do Grande Hotel (erguida depois de 1906 e antes de 1912). Além das diferenças formais existentes entre o anexo e a construção original já apontadas no texto, podemos citar mais uma. Na platibanda corrida do acréscimo havia tramos de mureta intercalados com trechos abalaustrados, enquanto nas platibandas originais, restritas aos topos dos corpos laterais do bloco primitivo, eram formadas tão-somente por balaústres, com pedestais arrematando as extremidades.
    Reconstituição gráfica aproximada executada com técnica digital.

    Autoria : arq. Eudes Campos, 2009.


    Vários autores dos últimos anos do século XIX fizeram menção ao Grande Hotel: Junius (1882), Kozeritz (1883) e Alfredo Moreira Pinto (1899/1900), entre outros.

    Junius, por exemplo, pseudônimo usado por Firmo de Albuquerque Diniz (1828-?), que abandonara a capital paulista sem tornar a vê-la por cerca de trinta anos, ao revisitá-la no início dos anos de 1880, ficou tão impressionado com o progresso da urbe, que chegou a escrever um opúsculo descrevendo essa visita (Notas de Viagem). Alojou-se no Grande Hotel e sobre essa excepcional casa de hospedagem teceu as seguintes considerações:
      O Grande Hotel causou-me agradável impressão: é um estabelecimento bem montado e de luxo: na corte e nas capitais das principais províncias do império que percorri não se encontra um igual. Inúmeros bicos de gás, bonitos candelabros, lindas jarras de flores sobre as duas compridas mesas, grandes espelhos a multiplicar os raios de luz e objetos que se achavam na sala davam belíssimo aspecto àquele ambiente. Eu senti uns ares dos bons hotéis da Europa: recordei-me do confortável e do bom gosto que neles se encontram. [atualização ortográfica conforme a edição de 1978; atualização da pontuação feita pelo Autor.]
    Passando por São Paulo em novembro do ano seguinte, o jornalista Carl Von Koseritz (1830-?), alemão radicado no Rio Grande do Sul, na volta de uma viagem à Corte, foi recepcionado na Estação do Norte por vários membros da colônia alemã residentes em São Paulo. Bastante fatigado, Koseritz recolheu-se logo ao Grande Hotel e, em suas notas, desta forma se expressou (Imagens do Brasil):
      Assim nos despedimos dos amigos e entramos muito cansados no soberbo vestíbulo do “Grand Hôtel”. Este hotel (a casa pertence[u] ao Sr. Glette do Rio e foi especialmente construída para o fim a que se destina) é o melhor do Brasil. Nenhum hotel do Rio se lhe compara. Pertence ao Sr. Schorcht, o antigo gerente do “Germânia” do Rio, o qual dirige magistralmente o seu estabelecimento. Nem o Rio nem todo a resto do Brasil possue [sic] nada parecido em matéria de luxo (no arranjo da casa e dos quartos), de serviço excelente, de cozinha magnífica, de variada adega. Grandes candelabros a gás iluminam o vestíbulo, e por uma larga escada de mármore branco se sobe ao primeiro andar, onde um empregado de irrepreensível estilo e toilette, avisado pelo porteiro por campainha elétrica, recebe o recém-chegado. Belos quartos com mobiliário muito elegante e excelentes camas, gás, banho, correios e telégrafos em casa, todas as comodidades, que tão raramente se encontram juntas, existem aqui ao preço moderado de 5$000 por pessoa, (10 marcos), enquanto no Rio hotéis muito piores pedem 8 e 10$000 [...]. Depois de nos termos lavado fomos às 8 horas para a sala de refeições e comemos com enorme apetite o nosso tardio jantar.
    São Paulo, 6 de novembro de 1883
    Também Alfredo Moreira Pinto (1847-1903) deixou assentadas suas impressões de viagem sobre a capital paulista, publicadas em 1899. Outra edição desse livro, com acréscimos, saiu no ano seguinte (A cidade de São Paulo em 1900). A respeito do Grande Hotel o autor consignou:
      Grande Hotel

      Está situado em um bello predio, construido de proposito para o fim a que se destina, na rua de S. Bento.

      Compõe-se de um corpo central e dous lateraes, todos com frente para aquella rua.

      O corpo central com tres janellas de sacada no primeiro andar e tres janellas no segundo. Os corpos lateraes com uma janella em cada andar, todas com balaustres de cimento.

      No pavimento terreo fica a porta de entrada, tendo aos lados casas commerciaes.

      Do lado da travessa do Grande Hotel há 15 janellas no terceiro e segundo pavimentos, sendo as deste com balaustres. O pavimento terreo tem 14 janellas e uma porta.

      Tem sallas de visitas e de jantar, montadas com decencia, e 42 aposentos, grandes, arejados e bem mobiliados. É seu proprietario o Sr. Carlos Schorcht.

    Rua Dr. Miguel Couto

    No alvorecer do século XX, porém, o Grande Hotel não podia mais ser tido como o de maior luxo em São Paulo. Moreira Pinto deixou claro em sua obra que o mais moderno e luxuoso estabelecimento dessa natureza era então considerado o Grand Hôtel de la Rotisserie Sportman, localizado na mesma Rua São Bento.

    Pelas informações dadas por Antônio Egídio Martins (São Paulo Antigo), entende-se que o Grande Hotel tinha fechado as portas por volta de 1910; mas, na realidade, havia apenas mudado de mãos. Por essa época o hotel usava como sucursal um vistoso edifício projetado em 1907 por Oscar Kleinschmidt no Largo do Café, visível em foto de Guilherme Gaensly (Fig.8). Mais tarde, em data ignorada, passou sua sede a abrigar uma pensão de primeira ordem, muito procurada por estudantes de recursos.

    Grande Hotel, filial Fig.8-Vista do Largo do Café, fotografado
    por Guilherme Gaensly (1843-1928).
    No centro, prédio ainda existente, em que funcionou por
    determinado período a sucursal do Grande Hotel.

    Fonte: KOSSOY, Boris. São Paulo, 1900:
    imagens de Guilherme Gaensly. São Paulo: Kosmos/CBPO, 1988.


    O tempo contudo mostrou-se ingrato e a decadência finalmente se instalou. A Travessa do Grande Hotel nos anos 30 passou a se chamar Rua Dr. Miguel Couto, em homenagem a um médico carioca muito conhecido, falecido em 1934. Quanto ao velho edifício, acabou demolido trinta anos depois, sem que aparentemente nenhum protesto tenha sido emitido pela sociedade civil, não obstante Yan de Almeida Prado ter, por diversas vezes, chamado a atenção dos arquitetos e dos estudantes de Arquitetura para a relevância desse edifício frente às demais construções paulistanas do período. Em seu lugar foi erguido um edifício comercial insignificante, ainda hoje existente, que durante muito tempo permaneceu inacabado.

    O Grande Hotel, sem sombra de dúvida, faz parte da história da arquitetura paulistana, e mais do que isso da arquitetura brasileira, tanto por seu estilo arquitetônico (testemunha dos primeiros momentos do Ecletismo na cidade de São Paulo) e porte incomum, quanto pela excepcionalidade e pioneirismo de sua função, hotel de luxo, o primeiro da cidade e de todo o País.



    Eudes Campos
    Seção de Estudos e Pesquisas


    BIBLIOGRAFIA
    • BARBUY, Heloisa. A cidade-exposição: comércio e cosmopolitismo em São Paulo, 1860-1914. São Paulo: Edusp, 2006.

    • CAMPOS, Eudes. Arquitetura paulistana sob o Império: aspectos da formação da cultura burguesa em São Paulo. 1997. 814 f. Tese (Doutorado em Arquitetura) – FAU USP. São Paulo. 4 v. v.1 e 4.

    • _____. A cidade de São Paulo e a era dos melhoramentos materiaes: obras públicas e arquitetura vistas por meio de fotografias de autoria de Militão Augusto de Azevedo, datadas do período 1862-1863. Anais do Museu Paulista. São Paulo,  v. 15,  n. 1,11-114, jan./jun. 2007.

    • ______. A Vila de São Paulo do Campo e seus caminhos. Revista do Arquivo Municipal. São Paulo, Departamento do Patrimônio Histórico, v.204, 11-34, 2006.

    • ______. São Paulo: desenvolvimento urbano e arquitetura sob o Império. In: PORTA, Paula (org.). História da cidade de São Paulo. São Paulo: Paz e Terra, 2004. 3 v. v.2, p. 187-249.

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    • JUNIUS (DINIZ, Firmo de Albuquerque). Notas de Viagem. São Paulo: Governo do Estado de São Paulo, 1978.

    • KOSERITZ, Carl Von. Imagens do Brasil. Belo Horizonte: Itatiaia; São Paulo: Ed. Da Universidade de São Paulo, 1980.

    • KOSSOY, Boris. São Paulo, 1900: imagens de Guilherme Gaensly. São Paulo: Kosmos/CBPO, 1988.

    • MARTINS, Antônio Egídio. São Paulo antigo. São Paulo: Secretaria de Cultura, Esportes e Turismo, 1973.

    • PINTO, Alfredo Moreira. A cidade de São Paulo em 1900. São Paulo: Governo do Estado de São Paulo, 1979.

    • PRADO, João Fernando de Almeida (PRADO, Yan de Almeida). Apontamentos para a história da arquitetura em São Paulo. In: GFAU. Depoimentos I. São Paulo: 1960.

    • ______. S. Paulo antigo e sua arquitetura. Illustração Brasileira. Rio de Janeiro, n.109, s.p., set.1929.

    • SALMONI, Anita e DEBENEDETTI, Emma. Arquitetura italiana em São Paulo. São Paulo: Perspectiva, 1981.

    • SANT’ANNA, Nuto. Metrópole. São Paulo: Departamento de Cultura,1950. 3v. v.1

    • TOLEDO, Benedito Lima de. Anhangabahú. São Paulo: Fiesp, 1989.




    Para citação adote:

    CAMPOS, Eudes. O antigo Beco da Lapa e o Grande Hotel.
    INFORMATIVO ARQUIVO HISTÓRICO MUNICIPAL, 4 (24): maio/jul.2009 <http://www.arquivohistorico.sp.gov.br>

    Serviços: A Seção Técnica de Logradouros é responsável pela pesquisa e orientação aos interessados sobre nomes de logradouros paulistanos. A documentação está disponível para consulta através do atendimento ao público.
    Conheça também o site Dicionário de ruas (parceria AHMWL e Plamarc), onde através de um banco de dados é possível realizar pesquisas sobre denominações de logradouros paulistanos.

     
    EXPEDIENTE

    coordenação
    Liliane Schrank Lehmann

    edição de texto
    Eudes Campos

    estagiário - pesquisa
    Arthur Henrique do Patrocínio

    webdesigner
    Ricardo Mendes

    distribuição
    Maria Sampaio Bonafé (coordenação)
    Elisabete De Lucca e Irene do Carmo Colombo


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    DPH


    SECRETARIA DE CULTURA


    Cidade de São Paulo


    Gilberto Kassab
    Prefeito da Cidade de São Paulo

    Carlos Augusto Calil
    Secretário de Cultura

    José Roberto Neffa Sadek
    Secretário Adjunto

    Paulo Rodrigues
    Chefe de Gabinete

    Walter Pires
    Departamento do Patrimônio Histórico

    Liliane Schrank Lehmann
    Divisão do Arquivo Histórico Municipal Washington Luís